Na esquina do Rossio com a Rua do
Ouro, onde há agora um estabelecimento que é meio livraria, meio quiosque, tinha
eu parado logo no primeiro dia, fascinado pela joalharia que então ocupava o
prédio. Não porque me interessassem especialmente as pratas ou as pedras, mas
sem fala diante daquela exposição de riquezas acumuladas nas vitrinas.
Os fios de ouro caíam em cascata. As salvas tinham dimensões de rodas de carro.Os
diamantes cintilavam em estojos forrados de veludo preto. Montões deles. Havia
candelabros da altura de um homem e toledanas embutidas de rubis. Correntes,
alianças, os anéis grossos com que as viúvas se fazem inveja. Fruteiras
descomunais. Crucifixos de metro em «prata maciça, 99,9% pura». Querubins.
«Últimas Ceias». Caravelas de filigrana. Talheres dourados, pérolas,facalhões
para trinchar perus, argolinhas de marfim para as gengivas dos bebés. Galheteiros
em «prata antiga do Brasil».
As vitrinas eram fechadas por espessos reposteiros azul--escuros, a esconder o
interior, bem assim como a porta. Da única vez que a vi abrir-se, um segundo ou
dois, as cintilações e fulgores vindos lá de dentro, multiplicados
infinitamente em cristais e espelhos, fizeram com que deixassem de me parecer exagero
a história de Ali Babá e o resto das Mil e Uma Noites.
Ao mesmo tempo tornou-se-me claro ser verdade tudo o que eu tinha lido sobre
riquezas orientais, as minas de Salomão, os tesouros do Négus, os galeões que
no passado chegavam a Lisboa com toneladas de ouro e prata: a evidência estava ali.
Lembro que me senti indiscreto, tomado por um vago receio de que, ao ficar
assim parado, estorvaria a passagem das princesas, dos nababos, dos monarcas
que muito certamente vinham encomendar as suas tiaras e coroas. Recuei uns passos para ver melhor as
grandes letras douradas sobre fundo de mármore negro e polido: «OURO – J. BRANDÃO,
JOALHEIROS – PRATA».
Depois fui-me pela cidade, alegre com tanta coisa bela, ao mesmo tempo um quê
melancólico, ciente de que imponências assim pertenciam a outros mundos e o
sonho permaneceria na minha vida um dos obstáculos maiores.
Naquela altura Lisboa era uma metrópole a fervilhar de actividade, cheia de
gente enriquecida durante a guerra, refúgio doutros chegados ali carregados de
fortunas e que, cansados ou contentes, tinham decidido ficar. Automóveis sumptuosos, com choferes
fardados, esperavam diante dos palácios e palacetes que então havia nas
avenidas. Ou rodavam lentamente, solenes, via-se dentro deles a gente retraída
e distante para quem nós éramos a paisagem. Os oficiais iam pelas ruas a cavalo,
em uniforme de gala, luvas brancas, pingalim, seguidos por ordenanças que, em
bornais vistosos, transportavam os documentos do Poder. Mulheres etéreas,
vestidas de seda, e atrás delas as criadas carregadas de pacotes e caixas. Sentia à minha volta a
forte trepidação de uma vida nova, o fascínio de mistérios imaginados, cultos
subterrâneos. Cada olhar cruzado com o meu, o virar de uma esquina, um sorriso, tudo me pareciam prenúncios
e sinais.