Mal vai àquele a
quem o mundo não surpreende. A esse respeito devo dizer que tenho sido um
bafejado da sorte, pois raro é o dia em que não me maravilho com o inesperado.
Assim, ao abrir dias atrás a revista do jornal holandês de Volkskrant,
e iludido pela fotografia da capa, mal cuidava eu da surpresa que me esperava.
Para quem não estiver ao corrente saiba-se que vivo entre os holandeses há mais
de meio século. Como todos os povos, gozam eles de várias famas, boas e más,
umas e outras nem sempre merecidas. Eu próprio confesso não ser isento de
preconceitos, sendo um dos meus favoritos o de que, de modo muito geral, o
holandês é o oposto do gourmet.
Nos anos mais recentes nota-se certa evolução nos hábitos. O país inteiro
envaidece-se com o facto de, desde há pouco, nele haver dois restaurantes a que
o Michelin atribuiu três estrelas, o que evidentemente nada diz sobre
a monotonia culinária dos Países-Baixos.
Pondo de lado as considerações, entremos no que interessa. Thérèse Boer e o
marido são proprietários de um dos dois restaurantes citados. Ele chefe famoso,
ela como anfitriã famosa também. Levam a vida que se espera dos ricos e
famosos, cada um com o seu Porsche e a sua Harley-Davidson, viagens assim,
festas assado…
Li a entrevista por alto, achei Thérèse Boer simpática. Dispensaria os detalhes
sobre a sua vida sexual, mas ri com a cena (muito holandesa) do casal que, pelo
menos uma vez, queria jantar num restaurante de três estrelas. Quando chegou a
conta abriram um saco onde traziam o mealheiro e, calmamente, passaram meia
hora a contar moedas. Thérèse, good sport, ofereceu-lhes o champanhe.
Mas logo depois abriu-se-me a boca. Nos últimos meses Thérèse tem notado, e o
marido confirma, um bizarro fenómeno: o número crescente de pessoas que,
sofrendo de doenças terminais, têm como último desejo um jantar no restaurante De
Librije, em Zwolle.
Vem a família, vem o moribundo, comem, degustam, e depois choram eles, chora a
Thérèse… “São momentos de muita emoção!” acrescenta ela na entrevista.
Não duvido. Para mim foi grande surpresa, esta versão moderna, mas pelos jeitos
já corrente, de “A Última Ceia” .