Um diário
pressupõe que nele se anotem as peripécias do dia-a-dia. Mas como, se a maioria
dos meus dias é de rotina que peripécia nenhuma perturba? Escrever sobre os
melros e os corvos, que no parque fronteiro são praga? Divagar sobre as garças,
imóveis na borda do canal, à espera do peixe que demora a vir? Especular com
dissabor sobre as ilusões perdidas?
Provavelmente terei de aceitar que sou impenitente no hábito de esbanjar tempo.
Vivendo e raciocinando em círculos. Obrigado a reconhecer que, sem conserto,
aguardo que aconteça amanhã o que não se deu hoje. Que continuo à espera que cheguem
de fora os estímulos que no meu íntimo faltam.
É penoso dizê-lo, mas verdadeiro, que há momentos em que a névoa do espírito se
me torna tão densa que me vejo a desejar um drama, um desastre, pouco importa
que sacudidela brusca. Algo que me agite ou transforme, como acontece aos que
têm visões e se convertem a uma religião, a uma política, aos que num assomo se
desfazem de bens e laços e vão bater à porta dos conventos, ou se metem a
caminho da Patagónia.
Fascinado pelo seu mistério, sempre tenho tentado esmerar-me no uso da
linguagem escrita. Eufonia, ritmo, diversidade do vocabulário, em cada frase
procuro conseguir uma harmonia que infelizmente (ou felizmente?) não se estuda
em manuais, não tem regras fixas, e em boa parte depende do estado de espírito.
De modo que uma frase com rimas, que num momento me perturbam e penso em
riscar, é muito capaz de no momento seguinte me parecer conseguida.
Hesitando, medindo, repetindo, umas vezes a tirar, outras vezes a repor, assim
vou compondo com lentidões de caracol. No intuito de dar o melhor de mim
próprio e, na medida do possível, contribuir para manter as qualidades e a
beleza da língua-mãe, a qual, por razões que nem sempre entendo, continua a ser
a âncora a que me agarro no Mar de Sargaços do meu espírito.