Na primária já o Abílio era o “Caixa d’óculos”, a alcunha colou, provavelmente assim teria ficado não fosse a zanga que teve com a Marília, quando estavam a discutir os preparos para festejar os dez anos de casados.
Querem-se bem, mas paixões e arrebatamentos não lhe estão no feitio, de si próprios dizem ser pessoas de calma e bom senso, que vivem como gostam, nada se lhes dando que um ou outro se queixe de terem esquecido um aniversário ou faltado a uma festa, certos de que lhes darão desculpa.
Talvez porque nesse momento os tomou um sentimento de discórdia que desconheciam, e preferem não se venha a repetir, desde aí são cuidadosos a evitar assuntos que tenham a ver com defeitos da visão e a necessidade de usar óculos.
Marília já há algum tempo se queixava de que os olhos começavam a acusar a idade, sentava-se mais perto da televisão, precisava duma lupa para os rótulos dos produtos, com o jornal muitas vezes ficava-se pelos títulos. Porém, obra do subconsciente ou inesperada suspeita, uma noite ocorreu-lhe que o Abílio nunca se queixava dos olhos nem falava de consultas, mas como ele já tinha adormecido, ficava a pergunta para melhor altura.
Essa altura criou-a ela na tarde seguinte, pegando nuns quantos dos muitos pares de óculos que Abílio tinha, todos idênticos e, para grande surpresa, descobrindo que as lentes eram apenas vidros lisos.
A sorrir de malícia, pegou naqueles “óculos” e foi direita a ele, fingindo de simpática, mas com ar de inspector da Polícia. Porque lhe custava a crer, fizesse o favor de explicar o que significava aquilo.
O Abílio sorriu, encolheu os ombros, mas estava entre a espada e a parede, confessou que tinha sido criancice da juventude, aquela idolatria pelos Beatles.
- E agora queres o quê? Que te chamem o John Lennon do Lumiar?
Foi então que tudo se estragou.