É
terrível a frieza desumana dos regulamentos. Um telefonema a anunciar que esta
tarde, à hora marcada, irei ao hospital assistir a uma morte. Seremos
quatro, os que ela pediu que estejam presentes quando, como há muito espera, o
médico finalmente a liberte do sofrimento e da indignidade.
Que palavras se dizem num momento assim? Para onde se
olha? Que gestos fazer? Que sentimentos me assaltarão. Será que, como agora,
ainda manhã, irei recordar boas e más ocasiões da nossa amizade? Ter pena?
Sentir medo?
Restam-lhe umas horas de vida, e dou-me conta de que
já falo no passado. Muito lhe faltou, porque não conseguiu o que desejava e o
seu intelecto fazia esperar, mas recebeu a dádiva sem preço de um amor
verdadeiro. Duas mulheres que a paixão uniu quando ainda era pecado e vergonha
e, sem queixa, sofreram o ostracismo das suas famílias e daqueles que aguardam
até que a sociedade lhes manda que mudem de opinião.
Escrever isto pode parecer exibicionismo, o
aproveitamento de uma tragédia, mas posso afirmar que o estado de espírito em
que me encontro, e a proximidade da minha própria morte, me põem além do
superficial. O terror e a solenidade de um momento assim não se partilha,
tão-pouco traz alívio ou é desabafo o assinalá-lo.
Olho
o relógio. Nunca as horas passaram tão depressa.