Hoje do Observador:
BOLSA LARGA, BARRIGA CHEIA
No seu discurso do 5 de Outubro de 2019, o Presidente da República afirmava que somos “uma Democracia assente em antiga e sólida Unidade Nacional”, palavras que Vítor Matos, no Observador, interpretou como significando: “toda a gente sabe que Portugal é um Estado Nação, sem separatismos. É uma forma de o Presidente sublinhar que não temos os problemas que se estão a viver em Espanha e na Catalunha.”
Por vários sentimentos e razões, as palavras do Presidente e a interpretação do jornalista vieram sacudir uma velha ideia minha: a de que Lisboa é um enclave, povoado de gente com uma nebulosa ideia do país a que pertence, e recordar o sonho que há muito acalento, o de que numa manhã de sol o rádio me acorde com a notícia de Portugal se ter declarado independente de Lisboa.
Claro que tal jamais irá acontecer, mas nada impede o meu vício de fantasiar, de modo que numa primeira fase imagino que haveria muita agitação, sobra de gritos e ameaças, pragas, insultos, os elegantes alfacinhas fazendo-nos manguitos, nós os pés-descalços a ameaçar de punho fechado e salivando raiva.
Avisadamente, logo começariam as negociações, e durante as tréguas para o almoço os delegados de ambas as partes discutiriam as exigências de uma solução. Passados longos meses, a pendência num beco sem saída, resultante sobretudo da dificuldade de como partilhar as escassas receitas, tanto mais porque a União Europeia havia décadas fora a enterrar, chegava-se finalmente a um acordo. O velho Portugal, forte e sensato levava a melhor, exigindo entre outras, igualmente drásticas, a mudança da capital para Braga, Guimarães ou São João da Madeira, lugares onde se trabalha e produz.
A Lisboa, infelizmente, restaria a dor de cabeça de ter de ganhar o pão para a boca em vez de, tal uma mulher por conta ou cavalheiro de indústria, continuar a viver à grande e à francesa à custa de traficâncias.
A fantasia tem destas coisas, mas a capital, os senhores que nela mandam, as suas clientelas e nuvens de parasitas, bem fariam em atentar no velho rifão de que “não há bem que sempre dure”, pois embora a vida folgada da soberba e sibarítica Lisboa dure há séculos, e à conta de manigâncias se lhe tenha tornado hábito viver com bolsa larga e barriga cheia, nada garante que não venha aí o dia em que Portugal, o manso e carinhoso país, cansado da máfia que nela rege e da Nápoles que é, junte forças, levante muros que a isolem e deixem entregue a um triste destino, o triste destino que há muito lhe profetizou Eça de Queirós, escrevendo que “Paris, Londres, Nova Iorque, Berlim, suam e trabalham. Lisboa ressona ao sol…”
Mudança com armas e violências de certeza nunca haverá, como também é improvável, malgrado vivermos num tempo de feminismo rabioso, que para as bandas do Minho se levante outra Maria da Fonte, “a cavalo sem cair, com a corneta na mão, a tocar a reunir.”
De modo que mais não resta senão esquecer o sonho, deitar a tonteria às malvas, abrir os olhos para a realidade, compreender que a situação criada há séculos se mantém e manterá. Por cupidez, desprezo e arrogância duns, mas também, doa a verdade, pelo desleixo e a passividade dos outros, a sua falta de genica disfarçada em impotência e mansidão.
Do desprezo dos lisboetas pelo território nacional, a que enfaticamente se referem como “o interior”, conheço exemplos de sobra, sobretudo um que realça na minha lista e acho curioso, porque leva a supor que o nojo dos lisboetas pelo resto do país e da sua gente, além de nato tem, como agora se diz, uma variante que os de fora podem adquirir por contágio.
Esse é, por exemplo, o caso que há tempos referia um nato de Moçambique com bastante de seu, que chegado pela primeira vez a Lisboa nos idos de 75, orgulhosamente conta logo de seguida ter-se sentido at home. Andou depois por Paris, Londres, Roma, Viena e outras bandas, mas só dezassete anos mais tarde se lhe despertou a curiosidade de ir ver como era o Porto, embora mal saído da estação de São Bento, e sem olhar em volta, rumasse directo à Foz, onde tem poiso a gente que, como a de Lisboa, é bon chique bon genre. Para mais não lhe sobrou curiosidade nem interesse.
E assim é. Pobres, coitadinhos, vegetando nos confins do “interior”, condenados à esmola e à subserviência, cidadãos de terceira classe, desse modo nos vêem e nos querem eles: agachados nos montes, morrendo devagar, agradecidos pela televisão que dia e noite nos mostra um pouco do mundo e muito da soberba capital.
Nela vemos a gente de mando, a começar por um Presidente da República como nunca tivemos, nem fazíamos ideia de que pudesse haver: lisboeta em tudo até à medula, tão diferente dos anteriores que nos perguntamos se se comporta assim porque o nosso respeito nada lhe diz, ou sente-se a tal altura que o que dele pensamos lhe interessa menos do que a primeira camisa que vestiu.
Também me ocorre estranhar que o vejamos com frequência, todo sorrisos, a banhar-se e a mudar de roupa nas praias de Lisboa e em paragens africanas, mas pelos jeitos não lhe merecemos igual intimidade, pois já lá vão anos da sua presidência e ainda nunca nos quis dar a honra de vir nadar num dos nossos rios ou albufeiras, reforçando assim a impressão que temos, de que até nisso como no resto são dois os pesos e duas as medidas.
Pode bem ser que o abandono e o atraso turbem o julgamento, nos impeçam de apreciar as verdadeiras razões de gozarem uns uma vida de abundância e conforto, enquanto a outros é atirada uma côdea, com o aviso de que a comam quietos e calados, sem queixas nem maus modos, porque a mão que dá é também a mão que tira.
Futuro? Para nós, na mó de baixo, por longo tempo ainda continuará a ser muito do mesmo, pois de Lisboa como de Castela nem bom vento nem bom casamento. E assim iremos até à hora em que o Senhor, atentando lá das alturas na desigualdade, e na vergonha que é terem-nos a viver como forasteiros subalternos no próprio chão, decida do nosso destino. Meios tem Ele de sobra.