Excerpto do prefácio que em 1992 escrevi para o livro de um amigo:
Espera-se a vitória do clube. Espera-se o destino cantando o fado. Perfilam-se os forcados à espera de vencer o touro. Arrastam-se os crentes pelo chão de Fátima à espera do milagre.
As circunstâncias do afastamento podem diferir, e o estado de espírito do emigrante que voluntariamente deixa o seu país em busca de vida melhor, ou o do expatriado que corre à aventura, não é por certo idêntico ao do exilado político. Mas ao redor dos vinte anos são poucas para o aventureiro, o emigrante ou o exilado, as oportunidades de sofrer com o afastamento. No estádio inicial da expatriação há em cada novidade mais caos do que harmonia.
A paisagem é e ficará
estranha. Mesmo com o tempo só em parte a chegaremos a absorver, só em parte se
tornará nossa, pouco importando que ultrapasse em beleza ou majestade a que
deixámos.
Esse
sentimento desnorteante de apenas conseguir absorver em parte, apreciar em
segmentos, compreender em retalhos, conhecer à superfície, vem logo de
princípio e fica para sempre a marcar as relações do estrangeiro com a
sociedade que o rodeia, as pessoas, as coisas, os hábitos e os modos.
A
experiência evidentemente contribui para limar as asperezas. Além disso, a
passagem dos anos permite desenvolver de tal modo o instinto camaleónico, que o
estrangeiro chega por vezes a conseguir funcionar como nativo. Mas de facto só
na aparência, só até certo ponto, pois à medida que se desenvolve nele o
sentido e a necessidade do disfarce, mais grossas se tornam as raízes que o
prendem à origem.
O
sentimento de, pela primeira vez, me achar de verdade desenraizado e
estrangeiro, só o tive ao chegar à Holanda em Março de 1956. Ao contrário da
minha experiência fui encontrar aí uma sociedade muito diferente das que tinha
conhecido, inesperadamente conservadora, provinciana, dócil na sua obediência
às autoridades e às regras. Uma Holanda onde mesmo Amsterdam era bucólica.
Tendo
decidido ficar, e numa idade, os vinte e seis anos, na qual, além de se ser ainda
muito sensível ao ambiente, tanto a personalidade como o carácter estão longe
de alcançar a maturidade, eu creio que, umas vezes por oposição, outras vezes
por simbiose e simpatia, foi na Holanda e entre os holandeses que se desenrolou
uma fase decisiva da minha formação.
A
Portugal voltei pela primeira vez em 1964, depois de uma ausência de quase
catorze anos, intimando-me, pelo caminho, a não fazer comparações materiais,
morais, sociais, menos ainda políticas.
Atravessei
a Espanha em ânsias, passei a fronteira a tremer, mas tanto as impressões dos
primeiros momentos, como as dos dias seguintes, confirmariam o mal fundado dos
meus temores.
As transformações eram poucas, menos dramáticas e menos visíveis do que eu
esperara: a idade tinha envelhecido os rostos que eram jovens quando eu
partira; devido ao dinheiro remetido pelos emigrantes notava-se um modesto
bem-estar; a guerra nas colónias era um acontecimento de que se falava com o
desprendimento das catástrofes que acontecem longe. Em Lisboa materializava-se,
finalmente, o sonho secular de unir com uma ponte as margens do Tejo.
Os
laços familiares e sociais, emperrados pela longa ausência física, pela
artificialidade das cartas obrigatoriamente bem humoradas, dos telefonemas
obrigatoriamente optimistas, retomaram a normalidade. E assim regressei à
Holanda, num estado de espírito mais calmo do que aquele em que partira,
justificando-o com o género de certezas que não resistiriam à análise, mas
tinham as vantagens do sedativo: o ditador não seria eterno, o país era pobre
demais para se pagar o custo de uma guerra, a desigualdade social fatalmente
acabaria por ser menos gritante.
Desse
modo, além das que já antes possuía, a partir desse ano Portugal ganhou aos
meus olhos as característica de um parente idoso e adoentado, que eu visitava
com frequência, desejando sinceramente que não tardasse a melhorar.
Quando
o sedativo deixou de surtir efeito, e me dei conta de que as melhoras desejadas
não passavam de ilusão, comecei a sofrer de um sentimento de culpa.
Pessoalmente vivia com conforto, tinha liberdade, conhecia mais dias de alegria
que de sombra, encarava o futuro com esperança. Mas todo esse meu luxo se
tornava em fardo ao lembrar a miséria, as circunstâncias primitivas, as
indignidades e injustiças da repressão, as humilhações a que tinham de se
sujeitar os sem dinheiro nem padrinhos.
Foi
essa a época dos presentes excessivos, dos grandes remorsos, do desespero de me
sentir jovem, livre, forte, mas acorrentado a uma pátria atrasada e exausta
pela sua longa espera.
A
mudança veio com a Revolução de Abril, mas diferente e menos brusca do que
seria de esperar.
O
que primeiro me surpreendeu durante as visitas que então fiz a Portugal, foi a
politização de tudo e o curioso uso do voto, empregado antes como instrumento
de discórdia e vingança, do que como expressão dum ideal político.
Para
mim continua a ser uma experiência desconcertante ouvir alguém, normalmente
sensato, afirmar a sério que nas próximas eleições votará comunista, só porque
o padre este ano preparou mal a procissão.
Outras surpresas no período seguinte à revolução: a mudança profunda das relações sociais, o surgimento de uma agressividade que eu - e a minha opinião não é única - julgava não se coadunar com a branda maneira portuguesa de ser; o aumento da indiferença entre as pessoas; a visível desagregação da família.
Em cerca de década e meia
Portugal “renovou-se”, eu “amadurei”. São poucos os pontos de contacto que
tenho com as gerações novas, desinteressadas como se mostram do passado – para
elas 1974 já é a antiguidade. Desesperantes são também as minhas relações com a
“velha guarda”, a qual, tendo no seu tempo desistido de agir e de “viver”,
sofre agora acessos patéticos de modernismo.
A
fortuna dos já ricos continua a aumentar, surgem novas castas de abastados, e a
linha que separa os que possuem, dos deserdados, vai-se tornando cada dia mais
nítida e inibitória como uma fronteira ou uma cerca.
Não
é possível, contudo, desprender-se a gente daquilo que nos é mais querido. Nem
eu o desejaria. Além disso, quanto maior é no tempo e na vivência, a distância
que nos separa da pátria, com mais tenacidade nos agarramos a tudo o que ela
para nós foi e é, mais intenso se torna o medo de perder e esquecer.
O país e eu perdemos a ditadura, o inimigo comum que nos unia, e em vez dele ganhámos interesses diferentes que nos separam. Velho para cima dos sessenta, eu quero manter, guardar, conservar. O Portugal de hoje, metamorfoseado em jovem desastrado, quer gastar e gozar. Vive de empréstimos, viaja de Nikes e mochila, tapa os ouvidos com o Walkman. Ele procura o ruído, eu busco a quietude. Cada casa grande de granito secular em ruínas é para mim uma dor. Ele festeja com música e foguetes os provisórios gavetos de betão que sobre essas ruínas constrói. Vistos do ar, os estaleiros das autoestradas que o entusiasmam e vão aproximar da Europa rica, aparecem-me como outros tantos caminhos de perdição.
No íntimo arreigou-se-me o temor de que o “meu” Portugal, aquele que me é querido, o Portugal que espera, parece lenta e fatalmente ir-se desintegrando.