É evidente que para Adão o problema não se punha, e para os filhos que teve também não, o mais provável é que tenha começado quando os seus tetaranetos quiseram ouvir dos pais como tinha sido o antigamente. Porém, mesmo nesse longínquo tempo e durante milénios, as mudanças aconteciam a um ritmo vagaroso, os avós podiam contar como então tinha sido sem que os netos se sentissem desnorteados ou encontrassem nisso motivos de escárnio.
Para simplificar, digamos que a certa altura, muitos milénios depois, o mundo levou uma reviravolta com os caminhos de ferro, e desde aí tem sido um furacão de invenções, cada uma parecendo apostada em suplantar a anterior no ataque ao remanso da humanidade, e à paz da nossa alma. Todavia, nem mesmo o mais bronco dos semelhantes ousará pôr em dúvida os colossais benefícios para o mundo inteiro e o interesse em recordá-los.
Acertado esse ponto universal, passemos então ao caso particular do Serafim Valverde, que a meio da casa dos oitenta detalha com azedume as queixas que tem dos netos, pois por mais que se esforce para partilhar com eles o que antigamente o maravilhou, é chocante o aborrecimento que lhes lê no rosto.
Querer surpreendê-los também não adianta. Que se fazia arrancar o motor dos carros com uma manivela, e para o dos aviões dava-se um empurão à hélice? Nas carruagens dos combóios os compartimentos tinham portas e janelas que se abriam? Que quando era miúdo o rádio era um luxo?
Se estão bem dispostos ainda o encaram, sorriem, fingem ouvir, mas essa cortesia dura um segundo, já os dedos se lhes escapam para o telemóvel e viram-lhe as costas com uma urgência de bombeiro a acudir ao fogo.
- Se calhar também fomos assim, na mocidade tudo são pressas. Mas nem de longe tanto como agora. E a grande diferença é o respeito, porque nosso tempo pelo menos fingia-se, não era esta bruteza, além de que alguns avós não se ensaiavam para dar uns tabefes. Hoje, nem pensar! E os pais estão do lado deles, eles é que têm direitos. Para te dizer a verdade, muitas vezes tanto se me dá como se me deu, o que me põe de través é a impressão que tenho que mesmo muitos da nossa idade encolhem os ombros, acham que o melhor é deixar andar, não querem chatices.
Falta-lhe o fôlego, leio no seu rosto que espera uma prova de solidariedade, mas demoro a reagir porque me tem entre a espada e a parede: é que nem os meus netos correspondem à imagem que ele tem dos seus, nem me sinto solidário com os rezingões do tempo em que tudo era melhor.