É personagem da minha juventude, tempo de espantos e descobertas, quando raro passava dia em que não acontecesse ficar de boca aberta, ou não levasse dos bons pontapés que doem dobrado, porque são prova da nossa ingenuidade.
Gabriel, o "Sacaninha", tinha aquele sorriso imbatível, um olhar franco, a dicção cuidada, o modo que pertencia a quem viera ao mundo em ninho confortável. O "Sacaninha" sabia dos clássicos, de línguas, era bom nas citações, fazia-as em Latim quando preciso. Chefe de Secção, o pequenino poder que detinha usava-o ele com o discernimento dos hábeis, medindo agrado e severidade, diligência e desprezo, sorriso e má cara. Dependia com quem, mas tão presto era nos rapapés como nos coices.
Para seu mal tinha nessa presteza o tendão de Aquiles: fazia de vez em quando rapapés a quem não lhos aceitava e havia ocasiões em que, falhando o alvo, recebia com juros os pontapés que dera. Mas nem isso o quebrava: o "Sacaninha" era como o vime, dobrava-se conforme a aragem e o poder de quem a soprava.
Com o calor de Agosto chegava a hora do "Sacaninha" dar nas vistas, pois trajava então uns fatos de linho de corte impecável, que no seu dizer só os talhavam iguais os melhores alfaiates do Rio de Janeiro. Talvez assim fosse, o caso é que o detalhe a ninguém importava, porque qualquer conversa com o "Sacaninha" só servia para demonstrar o desdém que tinha pelo semelhante e as alturas a que pairava o seu ego.
As três esposas – diziam-no, só conheci a terceira – não as escolhera ele por amor ou beleza, nem sequer pelo baixo interesse do dinheiro, mas por demonstrarem uma capacidade muçulmana de submissão, que era espectáculo quando com elas saía à rua. Não que tivessem de o seguir três passos atrás, pois até as levava de braço dado, mas desviando o cotovelo de tal maneira que as obrigava a caminhar de esguelha, como se fossem arrastadas ou as levasse à trela.
Recordo-o muitas vezes, pois com os seus defeitos e extravagâncias sempre era alguém, uma figura, um personagem de excepção que com a sua maneira de ser punha cor no cinzento dos dias, e cuja falta especialmente sinto neste incrível ambiente de medo e máscaras em que se tornou o nosso dia-a-dia.
Lembrei-o também a semana passada ao ler que por essas questões de meio ambiente talvez termine o uso das urnas, e já há quem deseje ser posto na campa envolto num sudário. É que foi assim, porque o escrevera em testamento, que com algum espanto vi enterrar o Gabriel embrulhado numa espécie de lençol.