Querida Fieneke,
Porque mesmo nós próprios pouco sabemos dos arcanos em
que se faz a associação dos pensamentos, não te sei dizer como é que o postal
que escreveste de Dar-es-Salaam me levou
a pensar nos anúncios matrimoniais que se lêem na imprensa.
O facto de a fotografia ilustrar o acasalamento de dois rinocerontes junto de
um baobá, tendo por fundo um espectacular poente africano, poderia levar um
ingénuo a concluir que, embora de forma regressiva, a associação até se impõe: anúncio,
contacto, cópula... Mas o processo do pensamento raramente segue trajectos
assim rectilíneos. Nele, como também sabes, tudo são curvas, sobreposições,
montanhas russas e enredos.
Seja como for, a imagem do rinoceronte fêmea que, indiferente, continua a
pastar, enquanto o macho, febril de cio, a monta com o seu enorme peso, dando
por certo os roncos que também na savana acompanham o acto, deve ter disparado
qualquer coisa em mim sobre o desastre que é o desencontro dos desejos –
sexuais e outros.
Daí, caprichoso, o pensamento foi saltando de recordações para ideias, de
teorias para sonhos e, antes de me dar conta de como e porquê, estava eu a
fantasiar um sistema mundial de simpatias. Através de um poderoso computador, cada
um de nós tornaria conhecido o seu (razoável) desejo do momento, com forte
probabilidade de que, algures no mundo, alguém se prestasse a satisfazê-lo.
Claro que, como em todas as fantasias optimistas, esse sistema não conheceria
obstáculos, fronteiras ou impossibilidades: o desejo surgia, anunciava-se, era
satisfeito, e passava--se ao candidato seguinte.
Foi então que me ocorreu que um sistema semelhante já de certo modo existe sob a
forma dos anúncios matrimoniais.
Só que os anúncios matrimoniais, talvez por geralmente serem redigidos de forma
lastimosa, raro alcançam o objectivo a que se destinam. Continuando o meu
devaneio, imaginei
como seria útil que os governos estabelecessem repartições, onde funcionários
habilitados na escrita se encarregassem, com frases escorreitas, de exprimir os
desejos daqueles que
ardentemente procuram um cônjuge, uma companhia, a realização de um sonho ou a
satisfação de um vício.
Tu, que também os lês, deves concordar que é cómico, mas ao mesmo tempo
deprimente, darmo-nos conta de que há quem procure a felicidade lançando em
público frases assim:
«Mulher espontânea, atraente, cinquenta e nove primaveras, deseja conhecer...
Elegante, sério, desportista, boa posição, cavalheiro de sessenta e dois anos
procura... Adoro campis-
mo, montanhismo, vela, hóquei em patins, desejaria encontrar alma irmã...
Elegante, 1,72 m, culta, viajada, viúva há três anos, sei que em qualquer
parte...»
Ao lê-los, e isto é apenas uma amostra diminuta dos jornais de ontem, uma voz
íntima disse-me que não zombasse dos sonhos alheios. Que não risse, porque
neste mundo tudo se paga. Mas olhando de novo o teu postal, e atirando os anún cios para o cesto dos papéis, não pude
reprimir um suspiro.
Que esbanjamento o gastar de tantos milhares de anos, para passarmos do
saudável instinto animal a esta banalidade.