Meu caro Eduardo,
A reacção inicial que tive à leitura da tua carta do
mês passado foi atirá-la amarfanhada para o cesto dos papéis. Mais tarde
retirei-a de lá, alisei-a, li-a de novo, e se não respondi de pronto foi porque
nestes últimos tempos o meu humor tende pouco para cortesias. Seja como for,
essa segunda leitura como que retirou as arestas à missiva e reduziu as tuas
imprecações àquilo que elas de facto são: uma desajeitada exteriorização de
pesar.
Acredito que tenhas sofrido com o falecimento do Alberto, mas não compreendo
que leves tanto a mal a minha ausência no seu enterro. Para começar, ele não
era para mim, como para ti, um íntimo, apenas o ex-colega com quem durante anos
mantive as relações superficiais que são a forma socialmente aceitável da
antipatia. Tu desculparás, mas aos meus olhos o Alberto personificava aquele
tipo de burocrata da intelectualidade que abunda nas universidades, e do qual o
balão é a adequada representação gráfica.
Além disso, a sua pedantice, a satisfação de si próprio, a arrogância tão
típica do espírito acanhado, faziam com frequência que o seu trato me fosse
desagradável.
Esta carta, porém, não tem por fim criticar os mortos,
de quem o adágio sabiamente recomenda que se enalteçam as virtudes, mas
explicar-te a razão por que, desde há tempos, decidi só ir a enterros nas
ocorrências excepcionais da morte de familiar ou de pessoa que prezo. E mesmo
esses estarão sujeitos a uma avaliação de última hora.
Em todo o caso, como dever social, a presença automática às cerimónias fúnebres
para mim terminou. Morreu fulano, morreu sicrano? Os parentes e os amigos que o
enterrem e lhe rezem pela alma. Pessoalmente sinto-me desobrigado de ir fingir
o que não sinto.
Tu acharás exagerada esta atitude, mas acontece que nos últimos funerais a que
estive presente, só com esforço consegui não desatar a rir. Ora o riso não é
propriamente a manifestação que melhor se coaduna com solenidade da morte. Por
outro lado, é quase impossível não rir quando, depois da costumeira música de
órgão, a viúva se aproxima do féretro e, em forma de homenagem, nos lê em voz
alta, durante quase uma hora, a dissertação sobre a filologia espanhola que o
defunto não conseguiu ultimar.
Já alguma vez praguejaste num cemitério? Pois eu dessa vez praguejei, o que me
ajudou a controlar o ímpeto de rebolar no chão às gargalhadas. Noutra altura
tive de suportar um longo concerto de melodias do Senegal, de que depois ouvi
dizer que eram a música predilecta do falecido. Num enterro posterior travei
conhecimento com um ritual que nunca antes tinha observado: segurando numa mão
um pequeno ramo de flores, familiares e presentes esfregavam-se com a outra
mutuamente as costas, não num gesto de carinhoso conforto, mas vigorosamente,
com os movimentos bruscos de quem sacode pó ou esfrega uma nódoa.
Acanhei-me de perguntar o que aquilo significava, temendo que se tratasse de um
costume de seita ou voto do defunto. Certo é que também nesse momento só não
sufoquei de riso porque, fingindo-me consternado, saí para o ar livre.
Claro que essas estranhas maneiras resultam da grande confusão que hoje
sentimos perante a morte. Abandonadas as normas formais do passado, e oferecida
a cada um a liberdade de fazer como bem acha, damo-nos conta de que o que era
solene se tornou banal, o que deveria ser sério desceu ao nível do ludismo das
quermesses. E assim, antes que aconteça ver-me um dia a dançar o sapateado em
torno de um caixão, para satisfazer um desejo do morto ou a bizarria dos seus
familiares, deixei de ir a funerais.