quarta-feira, fevereiro 17

"Le Beuret"

Certas histórias, mesmo comezinhas, só se podem contar de maneira satisfatória quando se lhes acrescenta um luxo de pormenores. A compreensão de outras necessita do apoio de referências: data, momento histórico, circunstâncias, antecedentes... Em vez da meia dúzia de folhas planeadas enche-se com elas um caderno. Há as que obrigam o narrador a valer-se aqui e ali de uma frase estrangei­ra, não somente para avivar a cor local, mas também porque a tradução, daninha e insuficiente, conduziria a um purismo caricato.

Mais adiante contarei como era meu hábito diário pedir a monsieur Antoine "Un grand crème et un croissant beurre, s'il vous plaît". Seria estranho escrever, recorrendo aos dicionários: "Senhor António, faça favor de me dar uma xícara grande de café com leite e um pãozinho (ou bolo) amanteigado em forma de meia lua." Além de não parecer a mesma coisa e fazer rir, até o cheiro e o sabor se tornariam outros na imaginação do leitor.

Algumas histórias, pois, já antes de contadas apresentam tantas exigências e obstáculos, que a gente se pergunta se valerá a pena ir por diante. Para quê, realmente? Além disso, casos como o que segue ocorrem todos os dias. Uns mais horrorosos; outros, ao contrário deste, requintadamente premeditados. Depois, no nosso tempo, a morte inesperada e violenta deixou de interessar, e nas estatísticas já ela provavelmente equilibra o tipo antigo da morte natural.

A razão e desculpa que me posso dar para prosseguir, será talvez a simpatia que sempre tive pelos romances policiais. Ou o fascínio com que leio a descrição de crimes e dos seus motivos. A surpresa de ter de admitir que não é preciso chegar a extremos para que qualquer de nós deite mão da navalha, da pistola ou do veneno.

 

Estamos em Paris, numa manhã de Janeiro de 55, alguns meses depois do começo da guerra pela independência da Argélia. Uma sexta-feira. Seria possível indicar exactamente a data, porque a apontei na agenda desse ano. Todavia, para descanso do espírito e com receio das recordações penosas, desde há muito que enterro agendas e diários numa caixa, os volumes de cada ano a pesar sobre os anteriores, escondendo-os à vista, tornando difícil a sua consulta.

O Paris lavado e colorido de hoje, com arranha-céus, périphérique, voies express, McDonald's, os tubos do Centre Pompidou e o resto do modernismo, difere muito da cidade farrusca, simpática e descuidada em que vivi a minha juventude. No boulevard Saint Germain, sentada na terrasse de La Rhumerie e ainda garota, Brigitte Bardot exibia escandalosamente as pernas. Mais adiante, no Deux Magots, estrábico, diminuto, arengando aos discípulos, Sartre representava o seu papel de "filósofo de génio mundialmente conhecido e, contudo, incrivel­mente simples."

A pílula que iria diminuir o que o sexo tinha de misterioso e biologicamente irremediável, estava a ser testada nas mulheres do Haiti. Na gare Saint Lazare (estação de São Lázaro? Im­possível!) as últimas locomotivas a vapor soltavam penachos de fumo. O câmbio de um escudo dava cem francos velhos. O aquecimen­to era a carvão, o gás servia para os suicídios e, nas ruas, a Polícia controlava os árabes segundo uma regra antiga: primeiro a cacetada, depois o nome, filiação, data de nascimento e estado civil, endereço, local de trabalho, papiers e jaula com eles.

 

Quase paralela à rue Cambronne e desembocando também na rue de Vaugirard, a rue du Genéral Beuret, com os seus prédios caducos, meia dúzia de lojas, meublés modestos, uma vaga repartição fiscal, a garagem, a agência funerária, constituía um mundo provinciano e fechado. As compras faziam-se no marché da rua Lecourbe, ali ao pé, mas voltava a gente esgotada daquela expedição a outros mundos, e só ao passar o primeiro dos dois cafés argelinos - do lado esquerdo, quem subia, cheiro de hortelã-pimenta, algazarra, melodias tristes - se conseguia recuperar o sentimento de conchego que a rua oferecia a quem lá morava.

Tendo adoptado os hábitos da vizinhança, eu saía cedo à procura do Figaro, dava os bons-dias a madame Marie Louise que me acenava por detrás das vidraças da loge e, lendo, entrava no Le Beuret, café anexo ao garni do mesmo nome.

- Bonjour, monsieur Antoine. Un grand crème et un croissant beurre, s'il vous plaît.

- Bonjour, monsieur José. Ça va, ce matin?

Eu fazia um gesto afirmativo e monsieur Antoine continuava a despachar cafés e copos de vinho, o resto da clientela discutia os jornais, trocava palpites para o tiercé, os reformados contavam em detalhe os seus pesadelos, os seus achaques, queixavam-se da falta de vergonha dos merceeiros, rogavam pragas aos senhorios.

Fora do grupo que lá passava o dia, ou quase, a clientela variava com as horas. Por volta das onze apareciam os funcionári­os das Finanças e os mecânicos da garagem, as donas de casa, os irmãos Jaffard: dois velhos silenciosos, proprietários do 36, ambos viúvos. Depois os que assistiam a digestão do almoço com licores. Pelo dia adiante vinham as raparigas, fartas de subir e descer as escadas do garni, trazendo a reboque os clientes de ocasião, que elas obrigavam a passar pela porta errada, aturdidos de se verem num café, quando tinham julgado que por ali escapari­am discretamente para a rua. Ao fim da tarde mal se cabia e monsieur Antoine recebia então assistência de monsieur Gégène e Mireille, uma gorda de Lille que ao ser beliscada exclamava: "Casse pas le pouce!"

As noites eram calmas. Os poucos clientes passavam o tempo com um café, um menthe à l'eau, as conversas faziam-se em sussurros, acontecia ver-se monsieur Antoine debruçado sobre o balcão, a descansar. Mireille retornava ao garni. Monsieur Gégène, que trabalhava na EDF e tinha de se levantar cedo, ao bater das nove vestia o casaco, dobrava o jornal, apertava com cerimónia a mão de monsieur Antoine, depois das boas-noites a todos saía melancólico e curvado.

 

Nessa sexta-feira a manhã estava fria, mas linda, cheia de sol. Eu tinha terminado o croissant, bebido o resto do grand-crème, e ao acender o primeiro cigarro tomou-me um sentimento de agasalho e calma, aquele bem-estar que às vezes vem com a mesma sem-razão com que noutras nos afligem os grandes medos.

- Mais um café, monsieur Antoine.

- Grand-crème? - perguntou ele, ligeiramente irritado com a minha falta de precisão e a quebra da rotina.

Acenei que sim e continuei a ler os escândalos do Bao Dai, a quem os jornalistas ainda chamavam imperador da Indochina, o que dava ao relato um sabor simultaneamente exótico e arcaico.

Eu não queria que a brusquidão de monsieur Antoine estragas­se o meu dia e, conhecendo-lhe os fracos, quando me pôs a xícara diante agradeci com um sorriso e apontei-lhe a página onde se detalhavam as corrupções e os crimes do monarca.

Monsieur Antoine deu uma vista de olhos às fotografias e aos títulos, desatando a afirmar com um entusiasmo desproporcionado, e para mim surpreendente, que eu tinha toda a razão (!), era pena deixar enferrujar as guilhotinas. Tipos assim, "Vietnamiens, Arabes (bicots, dizia ele), Sénégalais", não valia a pena dar-lhes bilhete de volta: era levá-los a pontapé para o matadouro dos cavalos, ali perto, e zás, zás, zás - ele imitava um som que com certeza era o da degola, pois a cada zás fazia o gesto de cortar o próprio pescoço. E os que por acaso escapassem, "Tarrá-tátá, tarrátátá, tarrátátá!"

Monsieur Antoine, a bondade em pessoa, pôs-se a disparar rajadas de uma metralhadora imaginária, só parou de gesticular ao ver o casal que entrava no café pela porta comum ao hotel.

 

A mulher vinha à frente, aconchegando ao corpo um casaco de peles curto, as pernas travadas numa saia à moda do tempo:  justa nas ancas e afunilada para baixo, de forma que em vez de passos parecia mover-se aos pulinhos, a marcha dificultada ainda pela altura dos tacões. Maquillage atrevido e demasiado perfume, mas um à-vontade que não parecia estudado, um modo franco de olhar, um sorriso alegre.

Pareceu-me velha. Na minha inexperiência de então as mulheres de trinta anos eram anciãs, seria improvável que naquela idade ainda tivessem "vícios", e as que não agarravam a tempo a bóia do casamento, certamente viviam noites horrorosas a sonhar com asilos, ou o que eu julgava o cume da miséria feminina: um emprego nos Correios.

O homem vinha atrás, cigarro na boca, o género de sujeito que em todas as horas e circunstâncias aparece lavado, escanhoa­do, perfumado, penteado. Aquele esmero e alguns detalhes - os anéis, a pochette, a corrente do relógio, o brilho dos sapatos caros - faziam com que ele, mais ainda do que a mulher, destoasse entre a clientela, gente que vivia constantemente em aflições de fim de mês, contas atrasadas, gastos de farmácia, e para quem a esperança do futuro se limitava ao que um dia lhes pudesse calhar por milagre, ou numa lotaria.

Por isso, talvez, o bom-dia que ela tinha dado ao passar e ele repetiu, foi respondido com o resmungo vago e desinteressado que não encoraja familiaridades, houve um alívio quando se foram sentar na mesa do fundo.

O sabê-los hospedados - informação que monsieur Antoine daria mais tarde - causou-me estranheza. O Hotel du Général Beuret era um estabelecimento modesto, com meia dúzia de hóspedes permanentes para justificar que as autoridades fechassem os olhos à sua verdadeira fonte de receita: o vaivém discretos das raparigas que faziam o trottoir na vizinhança. Mas se de facto o hotel não queria outros hóspedes, também saltava à vista que ela não era da "vida", e entre ambos parecia existir aquela intimidade despreocupada do casal que se entende bem, com os gestos, os sorrisos e afagos que denunciam uma camaradagem de anos.

 

Monsieur Antoine levou-lhes dois cafés, mas um instante depois o homem levantou-se e veio ao balcão pedir conhaque.

Teria quê? Quarenta anos? Quarenta e cinco? Ali ao meu lado, à espera que monsieur Antoine enchesse os copos, reparei nas mãos manicuradas, as unhas com verniz, o que já então era raro e de uma decadência rebuscada. O esbranquiçado da face tanto poderia ser talco, como aquela tez que ganham os actores depois de passarem anos a usar cremes e pinturas. O cabelo, dividido por uma risca a meio e acamado pela brilhantina, era uma carapaça ruiva a formar na testa duas palinhas simétricas de um gosto antigo.

Homem de teatro? Chefe de secção numa tesouraria? Comercian­te? Valet de casa rica em dia de folga? Quando ele se retirou, monsieur Antoine, suspeitando a minha curiosidade, esclareceu que monsieur Alain e madame Agnès vinham de longe a longe passar uma semana a Paris e, fiéis à memória da primeira visita - ainda jovens, com fraca bolsa - continuavam a hospedar-se ali.

Surpresa: madame Agnès geria em Concarneau um talho herdado dos pais. E monsieur Alain, que começara a vida cabo de Artilha­ria em Nancy e estivera prisioneiro dos alemães, tinha comprado depois da guerra uma fabriqueta de molduras, e hoje... Meio escondido pela máquina do café, para que só eu visse, monsieur Antoine ergueu os braços a abarcar um mundo:

- Hoje são as molduras, são os espelhos, tem um negócio de cobertores, um barco de pesca!...

Mireille, que viera espreitar se era preciso ajuda e ficara a ouvi-lo, deu-lhe uma cotovelada nas costas. Era de pasmar como Antoine, com tantos anos de experiência no café e no hotel, engolia as patranhas que lhe contavam. Qual molduras! Que barco de pesca? Só porque o sujeito tinha contado? Na opinião dela aquilo era arranjo, uma liaison, encontravam-se uma vez aqui, outra acolá. E se se fosse a acreditar no que as pessoas diziam!...

- Mas então há anos - disse monsieur Antoine mal humorado.

- O quê?

- Se é arranjo, já dura há anos.

- E daí? - ela olhou-o surpreendida, como se o raciocínio lhe parecesse incoerente, mas não esperou resposta e virou-nos as costas.

 

Ao fim da tarde voltei ao café. Tinha escurecido cedo e as luzes brilhavam mas, contra o hábito, a clientela rareava. Havia lugar ao balcão, quase todas as mesas estavam vagas, Mireille e monsieur Gégène afadigavam-se a mexer nas garrafas e a arrumar as xícaras, de modo a que aquele vazio se não notasse muito. O humor de monsieur Antoine tinha visivelmente piorado, bastava ver como ele, sem encarar ninguém, passava e repassava o pano sobre o balcão.

Quando lhe pedi um copo de vinho franziu o sobrolho:

- Um copo de vinho? Desde quando é que você bebe vinho fora das refeições? Então não é sempre café?

Tentei sorrir, disse-lhe que era um apetite que me tinha dado, mas ele fez ouvidos de mouco:

 - De verdade que não quer café?

Insisti no vinho. E ele, impaciente:

- Bon Dieu! Mas que vinho? Tinto? Branco? Monsieur não tem pressa, monsieur vai pensar, o pobre Antoine que se coza e perca tempo à espera de saber que garrafa tem de abrir.

- Tinto, se faz favor.

Serviu-me com um encolher de ombros, dando a impressão que os respingos que fazia saltar do copo para o mármore eram mais de desagrado do que falta de jeito. Depois, bufando, recomeçou a passar o pano pelo balcão em movimentos sacudidos.

Mireille piscou-me o olho, encheu outro copo da mesma garrafa e veio debruçar-se diante de mim:

- Está fulo.

- Mas porquê?

- Os pombinhos - disse ela, indicando o fundo da sala com o queixo.

O casal continuava sentado à mesma mesa da manhã, mas agora acompanhado de um desconhecido de costas para nós, os três a gesticular com a animação e as gargalhadas que precedem a bebedeira.

- Não saíram dali?

- Saíram - explicou Mireille. - Por volta da uma foram almoçar ao L'Oie Blanche, mas pelos jeitos não havia lugar e comeram no Chez Cambronne. Depois voltaram para aí... Porque é que estás a rir?

Sacudido pelo riso não pude explicar logo que Raymond, uns dias antes, escaldado pelo preço e descontente com a gastronomia, tinha rebaptizado o restaurante em Chez la Merde.

Mireille não gostou, disse que no Chez Cambronne se comia mesmo bem e uma gracinha assim podia sair cara: levavam-se anos a ganhar boa reputação, a atrair os clientes, mas às vezes bastava um engraçado inventar uma alcunha, levantar um boato, e ia tudo por água abaixo. Por isso fizesse eu o favor de dizer ao amigo Raymond para calar o bico, senão dizia-lho ela e tinha a certeza que ele não ia gostar.

Fiz um gesto de paz, bebemos um golo.

- Pois quando voltaram do almoço - continuou ela - estiveram primeiro aqui ao balcão a beber conhaque com o Antoine, e quando o Achmed veio buscar a chave ofereceram-lhe um copo, de brincadeira, a ver se ele aceitava, ou se dizia que não podia, lá por causa da religião. Mas claro que todos bebem. Quem vai acreditar que vivem só de chá? Ele aceitou, meteram-se os três à conversa, a falar da guerra, e mais isto, mais aquilo, foram para a mesa e ainda se não calaram. Vão na segunda garrafa. E o Antoine está furioso. Com razão. Diz que com o árabe aí as pessoas não entram. Mas também não se atreve a mandá-lo embora, porque  sabes como eles são: uma palavra, um olhar que não lhes cai, e ninguém os segura.

Voltei-me para ver e só então reconheci Achmed, um dos empregados do café argelino que, por uma bizarria arquitectónica, partilhava com o hotel uma porta nas traseiras. Outra bizarria, mas essa jurídica, nascida de uma questão de heranças, tinha concedido ao proprietário do garni a posse da chave, de forma que quando os árabes do café necessitavam dela, eram obrigados a ir ao beija-mão.

Até ao ano anterior tinham vivido em paz e boa vizinhança, mas desde o começo das hostilités na Argélia monsieur Antoine fazia o possível por evitar o contacto e, ao entregar a chave ou ao recebê-la, resmungava e deixara de sorrir. Depois exaltava-se: "Sales bicots!" É degolá-los! Ou então..."

Como não lhe ocorria alternativa, atirava patadas ao soalho com uma violência tal que as garrafas tilintavam nas prateleiras e os clientes, preocupados, retiravam os copos do balcão.

 

L'Oie Blanche eram duas salinhas diminutas onde a vizinhança ia comer com o à-vontade de quem está em casa, e se faltava um garfo ou era preciso um copo o hóspede levantava-se e ia buscá-los, para não perturbar a lentidão ritual com que Madeleine servia.

Os "diários" tinham o privilégio da mesa certa - se eram pontuais - argolinha para o guardanapo e de lhes ser servido, ao preço do vinho de pipa, um Juliénas que madame Daubisse, a proprietária, comprava a um sobrinho e mandava engarrafar na origem.

Sobre a qualidade não havia discussão, os preços eram modestos e a casa sempre à cunha. Os prudentes reservavam a sobremesa logo à entrada, porque as tortas tinham fama e desapareciam num pronto. Os estranhos, os nervosos e os apressa­dos, esses eram servidos a toque de caixa por madame Daubisse, com a dupla intenção de poupar o humor da empregada e para que, nas suas próprias palavras, se pudesse comer ali em paz.

Nessa altura os fundos não me permitiam ser "diário", mas às noites de sexta-feira quase sempre lá comia, talvez a festejar inconscientemente o alívio de ter passado a semana sem sofrer as catástrofes que o horóscopo me prenunciava.

- Bonsoir, madame Daubisse.

Ocupada com a caixa, o lápis entre os dentes, ela olhou por cima dos óculos e fez uma aceno de simpatia. Já não havia tortas. Fui-me sentar. Madeleine, pachorrenta como de costume, trouxe o pão, depois o talher, depois o guardanapo, enquanto eu lia o menu, hesitando entre o rouget sauce hollandaise e a selle d'agneau braisée aux poivrons rouges.

- Não adianta estar a escolher. A cozinha só tem entrecôte marchand de vin. O resto acabou.

- Tudo?

- Tudo.

- Então a entrecôte.

Pousei o jornal irritado comigo mesmo, por sentir que uma decepção como aquela, um nada coisa nenhuma, bastava para transformar o meu bom humor em abatimento.

- É tarde - disse Madeleine, a explicar a escassez dos pratos, ao mesmo tempo que, como compensação, desarrolhava uma garrafa de Juliénas.

Eu quis concordar que realmente era tarde, mas já ela me tinha voltado as costas para ir buscar o copo.

Os poucos clientes que restavam iam na sobremesa ou no café. Nas mesas vagas, ainda por arrumar, amontoavam-se os guardanapos sujos, os restos de pão, cascas de laranja, nalgumas toalhas havia nódoas de vinho derramado. Um fim de festa.

- Bonsoir, madame.

A voz era vagamente familiar, mas pareceu-me curiosidade demasiada o voltar-me e continuei a ler.

- Só há entrecôte marchand de vin - avisou Madeleine.

- Serve - respondeu uma voz feminina.

Monsieur Alain entrava acompanhado da mulher e de Achmed. Ao dar-se conta do estado em que vinham, Madeleine indicou-lhes uma mesa afastada, arrumou-a com uma prontidão desconhecida, e ia deixá-los em paz quando monsieur Alain lhe tocou o braço:

- Três conhaques.

 

No dia seguinte, e várias vezes depois, esforcei-me por recons­truir as cenas do jantar, mas na minha memória só ficaram fragmentos e suposições. Madame Agnès rindo de qualquer coisa que Achmed lhe sussurrava. O sapato luxuoso de monsieur Alain pousado sobre o sapato de Achmed. O braço de madame Agnès caído no ombro de monsieur Alain. O braço de madame Agnès em volta do pescoço de Achmed. Os dedos de Achmed presos nos dedos de monsieur Alain. Monsieur Alain em pé, beijando ternamente os lábios de madame Agnès. Achmed a acariciar o rosto de monsieur Alain.

Madame Daubisse tinha vindo sentar-se diante de mim, mal disposta, o sobrolho carregado:

 - Quem é esta gente que veio com o Achmed?

Não respondi logo, fascinado por aquele entrelaçar de pés e mãos, o frenesim das carícias, o riso sacudido e nervoso com que eles reagiam aos cochichos uns dos outros.

- Quem são? - insistiu ela.

Disse-lhe o pouco que sabia, e porque tinha acabado de comer acenei a Madeleine para que trouxesse a conta. Madame Daubisse, porém , pediu-me que ficasse um bocado. Ia mandá-los embora, a pretexto de fechar, mas como os outros clientes já tinham saído, no caso de haver encrenca queria testemunhas.

Madeleine foi-lhes dizer que não havia sobremesa e para o café era despacharem-se, passava da hora.

- Café e conhaque - disse madame Agnès.

Com o conhaque Madeleine levou-lhes também a conta, eles beberam sem pressa, monsieur pagou, dali a nada saíam os três de braço dado, dando cortêsmente as boas-noites.

O que sobretudo nos causou estranheza foi a atitude de Achmed, a passar por nós como se nunca nos tivesse visto, tanto mais que éramos todos vizinhos e nos conhecíamos há anos.

- Além disso, cenas assim... Eu não esperava isto dele. Francamente, não esperava. Um rapaz tão sério... E o casal! Que gente!... - madame Daubisse abanava a cabeça, incapaz de encontrar palavras para a sua reprovação.

 

- Bonjour, monsieur Antoine. Un grand-crème et un croissant beurre, s'il vous plaît.

- Bonjour, monsieur José. Ça va, ce matin?

A avaliar pela cara e pelos gestos demorados, monsieur Antoine tinha passado uma noite má, de pouco sono.

Os reformados do costume discutiam as suas doenças, preparavam as apostas, e entre dois cafés ou dois copos de vinho desciam ao marché da rue Lecourbe a informar-se dos preços. No regresso traziam desgraças para contar: o repolho a duzentos francos (anciens) o quilo, as costeletas a mil, o pão e as batatas outra vez a subir.

- Mais um? - perguntou monsieur Antoine, apontando a xícara vazia, a recordar-me a extravagância do dia anterior.

Acenei que sim, com um sorriso, certo que daí em diante passaria a tomar dois grands-crèmes ao pequeno almoço.

Ele serviu-me e encostou-se ao balcão, a cabeça a repousar contra o armário dos pastéis:

- Estou arrebentado. Outra noite como esta e podem-me preparar a cova no Père Lachaise.

 

O trio tinha voltado tarde e más horas, ele próprio estava quase a fechar. Recomeçaram na bebedeira, pagaram rodadas, quiseram música, e como sempre há quem goste de beber de graça, às quatro da manhã o café estava ainda cheio de gente. Teve de se zangar para pôr fim àquilo. A polícia podia fazer uma rusga, e não era só pela multa, mas o perigo de o levarem a tribunal e perder o alvará. Quando quis que o árabe também saísse, monsieur Alain e a mulher tinham começado uma algazarra dos diabos, que o Achmed ficava com eles, que se fosse preciso pagavam um quarto extra.

- Enfim... Para não estar a ouvir coisas, aluguei-lhes um quarto para o rapaz. Mas claro que se meteram os três no 212, com o champanhe. Que lhes faça bom proveito. Cada um tem os seus gostos, sabe da sua vida, mas às vezes...

- Champanhe?

- Levaram duas garrafas para cima. Eu estive a pensar e a Mireille tem razão: não devem ser casados. E cá pelas minhas contas monsieur Alain é pédé. Se você o visse apertado ao bicot, às palmadinhas, aos beijos! Um nojo!

Dizendo isto passou o pano sobre o mármore, lentamente, abrindo a boca num grande bocejo, e eu desdobrei o jornal, à procura da continuação dos escândalos do Bao Dai.

O mais velho dos irmãos Jaffard veio pedir dois express e um copo de água, explicando que o médico lhe receitara outras pílulas para o fígado, maiores e muito ruins de tomar, mas não sentia melhoras nenhumas, antes pelo contrário, o medo dele era que se tivessem enganado na farmácia e andasse a tomar pílulas trocadas.

Mireille apareceu nesse instante à porta que separava o café do hotel, a boca escancarada, com uma expressão tão intensa de terror que me fez levantar, e quando finalmente o grito lhe saiu da garganta, petrificando os clientes, já monsieur Antoine e eu corríamos escada acima, tomados pela mesma suspeita.

 

A porta do 212 estava aberta. Monsieur Antoine deteve-se, disse Sacré Dieu! amparou-se à ombreira e numa revolta das entranhas começou a vomitar. Eu, frouxo das pernas, não pude conter a golfada e vomitei também.

Nu, banhado em sangue, estripado, o corpo de monsieur Alain ficara de través sobre a cama e a sua cabeça olhava-nos como se vivesse, as palinhas do cabelo estranhamente compostas. Madame Agnès, também nua e ensanguentada, tinha caído no meio do quarto, perto do corpo de Achmed, quase decapitado por um golpe da navalha de barba que lhe ficara enterrada no pescoço.

Mas já as escadas e o corredor se enchiam de gente que queria ver, aos empurrões, aos gritos, ouvia-se a voz histérica de Mireille ao telefone a pedir ambulâncias, jurando que era urgente. Monsieur Antoine fechou a porta e ficámos os dois ali de guarda até a polícia chegar.

 

Os jornais levantaram hipóteses, construíram fábulas, fizeram de Achmed um perigoso terrorista argelino e de monsieur Alain um detective. Escreveram que madame Agnès, na sua juventude heroína da Resistance, tinha morrido em defesa dos ideais da Algérie Française. Outros inventaram histórias de droga e contrabando, ajustes de contas no millieu. Um jornalista mais desvairado fabricou um caso de ciúmes e patriotismo: monsieur Alain, ao descobrir que a esposa se apaixonara pelo argelino, tinha-os matado a ambos, lavando ao mesmo tempo a sua honra e eliminando um inimigo da Pátria. Depois, não querendo sobreviver à vergonha, acabara por se suicidar.

A verdade, porém, nunca se veio a saber. Nem os médicos encarregados da autópsia ou os polícias que fizeram a investi­gação chegaram a acordo sobre quem tinha sido assassino ou assassinado. Todas as armas presentes - a navalha de barba, um punhal, uma agulha de aço de vinte centímetros e uma tesoura - tinham sido utilizadas para causar ferimentos mais que uma vez, em mais de um corpo, e nelas só se encontraram as impressões digitais dos falecidos.

O que depois se descobriu foi que madame Agnès era viúva e realmente geria um talho em Concarneau; e monsieur Alain, solteiro, de seu nome Jules Maréchal, possuía em Brest uma loja de panos.

 

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