- Quarenta e dois é a
força da vida.
- A mocidade. Foi uma
grande pena.
- Uma tragédia.
Ouvia as conversas
mal dando conta, ainda absorta no cerimonial do enterro e a recordação absurda
de incidentes comezinhos, cenas estúpidas. Incompreensível lembrar-se agora que
no dia do acidente ele teimasse em vestir o polo que trouxera da América; que
tinha de pagar a conta do telefone; que o Justino não viera compor o beiral.
- E bom rapaz.
- Muito bom rapaz.
- Nova e bonita como
é, com o que herdou do pai e o que lhe vem agora, a Helena…
Afastou-se antes que
dessem conta de que os ouvia. Sim, era rica. Bonita? Com o véu não veriam que
tinha sorrido com o cumprimento.
- Espera-se pelos
carros? – perguntou alguém num sussurro.
Teve uma sensação
desagradável quando um senhor de idade a agarrou pelo braço para lhe contar que
nos anos sessenta, em Luanda, comprara “ao seu papá que Deus tenha um Chevrolet,”
e com esse carro começara a sua prosperidade. “Graças ao seu papá, querida
menina! Um santo!”
Enojavam-na aqueles
dedos, nuns apertos inquietos que tanto podiam ser emoção como luxúria. Com um
gesto livrou-se dele, olhos baixos, contrição fingida, achando graça à sogra
que costumava dizer “ Eu cá não acredito em Deus nem no Diabo, só no dinheiro.
Nosso Senhor é uma boa treta!”, e caminhava de rosário na mão amparada ao
padre.
- Linda viúva.
- Boas pernas e
dinheiro como chuva.
Incrível. Nem sequer
reparavam que o burburinho não bastava para abafar as vozes.
A meio da tarde
tinham telefonado da Polícia, um funcionário que dizia “xim senora”. Deu um
retoque às sobrancelhas e telefonou aos sogros que o Manuel sofrera um
acidente.
Tinha sido bizarro o
dar-se conta que nunca entrara num hospital. O ar abafado fizera-lhe lembrar o
colégio, as freiras, o cheiro de sopa e desinfectante. Uma enfermeira
sussurrou-lhe que ainda estavam a
operá-lo e ela sentou-se no corredor, olhando em torno, perplexa de que o dia acabasse
em tragédia.
- Aqui não se pode
fumar.
A abrir o maço não
tinha dado pelo rapaz, a cadeira de rodas não fazia ruído.
- Naquela salinha
pode – disse ele, sorrindo.
Sorriu também e
guardou o maço na bolsa.
- Com certeza
desastre.
Acenou que sim e o
rapaz fez rodar a cadeira, ficou diante dela.
- Estou cá há dois
meses mas tive sorte, sabe? Só fiquei paralítico da cinta pra baixo. Mas se
quer ver o que é azar vá àquele quarto, está ali um sem pernas e só com metade
dum braço. Na cama parece um pacotinho.
O chofer fechou a
porta e ela tirou o véu, acendeu o cigarro.