quinta-feira, julho 2

Coito selvagem


"Às seis, quando o telemóvel a acordou, tinha ido em bicos de pés ao quarto de banho, cautelosa em não puxar o autoclismo e, de corrida, chapinhara água no rosto, que para mais não dava a pressa.
Depois, em baixo, numa mão os ténis, a mala na outra, encostou-se à porta enquanto se calçava, e só então deu conta da falta da chave, mas ainda sem temor, porque ele às vezes a guardava no armário da cozinha ou deixava cair entre as almofadas do sofá.
Procurou,  aflita, já certa de que era em vão, sabendo também que ele trancava as janelas e nenhum martelo seria capaz de quebrar os vidros duplos.
Sentava-se um instante, para logo recomeçar a busca inútil, subiu ao quarto com ideia de que talvez saltasse de lá, embora soubesse que daquela altura nunca teria coragem de arriscar.
Sabendo-se enjaulada, começara a amorrinhar, deixando que a resignação a tomasse, sentindo-se indiferente, insensível ao que fosse acontecer.
Talvez ele não lhe batesse, só ralhasse. E se batesse, se calhar não lhe faria muito mal,  nunca poderia ser como da vez que o "Gandú" a deixara por morta e tinham levado para a Urgência.
- Ora então muito bom dia! Viva a menina!
Estremunha, perplexa, incapaz de compreender, podia jurar que estava acordada,  mas nada viu nem ouviu, e de repente está ele ali a olhá-la de alto, só de cuecas, descalço, cigarro no beiço.
- Perdeste o comboio, hein? Anda. Vai-nos fazer um café.
Sorrindo maldoso, deixa-se cair no sofá, dando a impressão de que é o peso da sua queda que a faz erguer, e ao mesmo tempo assenta-lhe no rabo uma palmada amigável:
- Despacha-te, Isaurinha.

Prepara o café sem pressa, menos para ser contrária do que a dar tempo a que  lhe passem os nervos, a mesma razão para em vez de só o café dele fazer dois, que talvez assim se lhe note menos o tremelicar.
Mas as xícaras tilintam no tabuleiro, é ela que se assusta ao pousá-las, ele parece não reparar, acenando que lhe deite açúcar, mais açúcar, que o quer bem doce, depois ele próprio tira do maço o cigarro que lhe estende, ela a chegar  o isqueiro.
- Então diz lá, estás a ficar porca? Deixas o mijo na sanita?
O modo não é de censura, antes simpático, quase terno, como faria a uma criança que se repreende, mas não a engana, de sobra lhe conhece as mudanças e sabe quanto ele é capaz de, sem aviso e sem razão, estourar num ataque de loucura.
Por isso evita encará-lo e espera, fuma devagar, atenta sem querer no corpo que não esperava musculado num homem daquela idade, nota a calma com que ele  fuma, o vagar a beber o café.
- Pelos jeitos estavas com a ideia de ir embora, hein? Sem mais nem menos, hein? E nem te ias despedir. Mas pra te dizer a verdade, eu é que tenho a culpa. Deixei-te o troco, não foi? Ora dá cá.
Tira o porta-moedas da bolsa, entrega-lho, ele pega nas duas notas de vinte,  desdenha as moedas.
- Era só isto?
- Era.
- E dava prá carreira?
- São dezanove.
A mostra de calma e a futilidade das palavras escondem o crescer da fúria que o toma quando de qualquer maneira se sente traído, enganado, quando não recebe o que espera ou lhe falham o prometido. Então desconhece-se, cai em transe, não lhe peçam calma ou juízo, encarna nele a besta de todos os males e crueldades.
Nela, por se saber à mercê, vai aumentando o desvario, continua de olhos baixos e a acenar que sim, mesmo depois de ele se ter calado, mostrando que aguenta mal a espera e, venha o que tiver de vir, será mais fácil de sofrer do que o vómito nas entranhas e o aperto da garganta.
Por fim, quando por acaso o olha de lado, basta ele mexer o queixo a indicar-lhe as escadas, para que se levante e caminhe sonâmbula, mas também aliviada de que o fim não tarde.
Despe-se, abre o lençol, deita-se nua, sentindo estremecimentos que não saberia dizer se são de medo, alívio, ou desejo inconsciente do corpo insatisfeito.
Ouve-o subir e cerra os olhos, mas ele próprio a força a abri-los, sentado na cama, segurando-a para que o encare, o aperto dos dedos a magoar-lhe a face.
- Ias fugir, hein? Sem dizer adeus?
A bofetada como que lhe rebenta a cabeça e sente os olhos desencaixar-se, a quentura do sangue a escorrer do nariz, mas queda-se numa aceitação animal, sem  vontade própria, incapaz de raciocínio ou sentimento. E como em estado segundo, assiste, participa, esquecida de ser, ignorante do que faz, do que vê, a modos de sentir seu o corpo e ao mesmo tempo o negar, sofrer-lhe a dor e sair dele.
Num reflexo tinha fechado as pernas, mas logo as voltara a abrir, obediente  quando ele, forçando, lhe pegou às mãos ambas como se a quisesse rachar.
Esperava bruteza e foi o que sofreu: o ventre esgarçado, uma sensação de queimadura, o peso, a asfixia da mão que lhe tapava a boca, a outra a apertar-lhe o pescoço. Coito selvagem, dor que nunca tinha sentido, nem suportado macho com raiva assim."

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In "O Meças" – Quetzal, 2016.