"Às seis, quando o telemóvel a acordou, tinha ido
em bicos de pés ao quarto de banho, cautelosa em não puxar o autoclismo e, de
corrida, chapinhara água no rosto, que para mais não dava a pressa.
Depois, em baixo, numa mão os ténis, a mala na outra,
encostou-se à porta enquanto se calçava, e só então deu conta da falta da
chave, mas ainda sem temor, porque ele às vezes a guardava no armário da
cozinha ou deixava cair entre as almofadas do sofá.
Procurou,
aflita, já certa de que era em vão, sabendo também que ele trancava as
janelas e nenhum martelo seria capaz de quebrar os vidros duplos.
Sentava-se um instante, para logo recomeçar a busca
inútil, subiu ao quarto com ideia de que talvez saltasse de lá, embora soubesse
que daquela altura nunca teria coragem de arriscar.
Sabendo-se enjaulada, começara a amorrinhar, deixando
que a resignação a tomasse, sentindo-se indiferente, insensível ao que fosse
acontecer.
Talvez ele não lhe batesse, só ralhasse. E se batesse,
se calhar não lhe faria muito mal, nunca
poderia ser como da vez que o "Gandú" a deixara por morta e tinham
levado para a Urgência.
- Ora então muito bom dia! Viva a menina!
Estremunha, perplexa, incapaz de compreender, podia
jurar que estava acordada, mas nada viu
nem ouviu, e de repente está ele ali a olhá-la de alto, só de cuecas, descalço,
cigarro no beiço.
- Perdeste o comboio, hein? Anda. Vai-nos fazer um
café.
Sorrindo maldoso, deixa-se cair no sofá, dando a
impressão de que é o peso da sua queda que a faz erguer, e ao mesmo tempo
assenta-lhe no rabo uma palmada amigável:
- Despacha-te, Isaurinha.
Prepara o café sem pressa, menos para ser contrária do
que a dar tempo a que lhe passem os
nervos, a mesma razão para em vez de só o café dele fazer dois, que talvez
assim se lhe note menos o tremelicar.
Mas as xícaras tilintam no tabuleiro, é ela que se
assusta ao pousá-las, ele parece não reparar, acenando que lhe deite açúcar,
mais açúcar, que o quer bem doce, depois ele próprio tira do maço o cigarro que
lhe estende, ela a chegar o isqueiro.
- Então diz lá, estás a ficar porca? Deixas o mijo na
sanita?
O modo não é de censura, antes simpático, quase terno,
como faria a uma criança que se repreende, mas não a engana, de sobra lhe
conhece as mudanças e sabe quanto ele é capaz de, sem aviso e sem razão,
estourar num ataque de loucura.
Por isso evita encará-lo e espera, fuma devagar,
atenta sem querer no corpo que não esperava musculado num homem daquela idade,
nota a calma com que ele fuma, o vagar a
beber o café.
- Pelos jeitos estavas com a ideia de ir embora, hein?
Sem mais nem menos, hein? E nem te ias despedir. Mas pra te dizer a verdade, eu
é que tenho a culpa. Deixei-te o troco, não foi? Ora dá cá.
Tira o porta-moedas da bolsa, entrega-lho, ele pega nas
duas notas de vinte, desdenha as moedas.
- Era só isto?
- Era.
- E dava prá carreira?
- São dezanove.
A mostra de calma e a futilidade das palavras escondem
o crescer da fúria que o toma quando de qualquer maneira se sente traído,
enganado, quando não recebe o que espera ou lhe falham o prometido. Então
desconhece-se, cai em transe, não lhe peçam calma ou juízo, encarna nele a
besta de todos os males e crueldades.
Nela, por se saber à mercê, vai aumentando o desvario,
continua de olhos baixos e a acenar que sim, mesmo depois de ele se ter calado,
mostrando que aguenta mal a espera e, venha o que tiver de vir, será mais fácil
de sofrer do que o vómito nas entranhas e o aperto da garganta.
Por fim, quando por acaso o olha de lado, basta ele
mexer o queixo a indicar-lhe as escadas, para que se levante e caminhe
sonâmbula, mas também aliviada de que o fim não tarde.
Despe-se, abre o lençol, deita-se nua, sentindo
estremecimentos que não saberia dizer se são de medo, alívio, ou desejo
inconsciente do corpo insatisfeito.
Ouve-o subir e cerra os olhos, mas ele próprio a força
a abri-los, sentado na cama, segurando-a para que o encare, o aperto dos dedos
a magoar-lhe a face.
- Ias fugir, hein? Sem dizer adeus?
A bofetada como que lhe rebenta a cabeça e sente os
olhos desencaixar-se, a quentura do sangue a escorrer do nariz, mas queda-se
numa aceitação animal, sem vontade
própria, incapaz de raciocínio ou sentimento. E como em estado segundo,
assiste, participa, esquecida de ser, ignorante do que faz, do que vê, a modos
de sentir seu o corpo e ao mesmo tempo o negar, sofrer-lhe a dor e sair dele.
Num reflexo tinha fechado as pernas, mas logo as
voltara a abrir, obediente quando ele,
forçando, lhe pegou às mãos ambas como se a quisesse rachar.
Esperava bruteza e foi o que sofreu: o ventre
esgarçado, uma sensação de queimadura, o peso, a asfixia da mão que lhe tapava
a boca, a outra a apertar-lhe o pescoço. Coito selvagem, dor que nunca tinha
sentido, nem suportado macho com raiva assim."
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In "O Meças" – Quetzal, 2016.