quinta-feira, abril 23

Venha um "Little Bang"


"Querida Rosalie,



A carta que escreveste de Manaus e chegou aqui ontem deixou-me às portas da depressão. Para ser franco, custa a compreender que uma rapariga como tu, doutorada, inteligente, experiente na análise dos fenómenos sociais, seja capaz de escrever um tal rosário de chochices (oito páginas!) sobre os perigos da desflorestação da Amazónia e as tragédias que ameaçam os índios que lá vivem. E o entusiasmo com que nela anuncias a intenção de de Manaus seguires para o Rio de Janeiro, para aí assistires à Conferência Mundial sobre o Ambiente, em vez de me alegrar só serviu para tornar maior o meu abatimento.
Com uma ingenuidade que primeiro me fez supor um abuso de cachaça, na tua carta debitas os mais estafados clichés sobre a exploração do Terceiro Mundo e acrescentas-lhes, como parece tornar-se norma geral, a profecia de que a poluição não tardará a destruir o planeta. Entretanto, alegremente leviana, não te cansas de viajar de avião; aqui e aí deslocas-te de carro, de autocarro, de comboio; usas lenços descartáveis; consomes jornais, livros, revistas, guardanapos de papel; rodeias-te de

aparelhos, não saberias passar sem os inúmeros produtos que providenciam ou aumentam o conforto, e assim por diante.
O meu impulso inicial foi pregar-te um sermão sobre a inconsequência. Mas, ou por influência do tempo, que aqui tem decorrido benigno, ou, mais certamente, pela amizade que te tenho, desisti desse ríspido propósito. Também, a falar verdade, a longínqua miséria alheia parece que cada dia se me torna mais abstracta, e a poluição do planeta cada dia me deixa mais indiferente.
Ao contrário do que argumentas, e não obstante as promessas dos políticos, as previsões ora optimistas, ora assustadoras dos cientistas, os projectos, as convenções, as conferências («Words, words, words!»), os acordos, os protocolos, uma alma em seu juízo não pode ter sobre os problemas do ambiente – para só falarmos desses – outra atitude que não seja a de um grande enfado. O que é de compreender, pois enfada constatar que do nascimento à morte a existência actualmente decorre sob o signo dos detritos.
No que respeita à Terra, pessoalmente não a creio ameaçada. Com os seus biliões de anos, a velha bola deve ter conhecido desastres maiores do que o de ficar coberta de lixo. Mudaram-se nela oceanos, transformaram-se continentes, desapareceram civilizações, formas de vida, e ela sempre continuou a girar e a descrever a sua órbita, com uma grande indiferença pelos arranhões recebidos na crosta. É pouco provável, portanto, que uma camada de lixo a ponha em vias de extinção.
O mesmo, porém, não acontece connosco. Todos juntos, os conscientes do perigo e os indiferentes a ele, corremos de facto o risco de desaparecer afogados no viscoso mar da nossa própria imundície. A Terra, essa, nem dará conta de que deixamos de existir. E o Sol continuará a brilhar. A Lua aparecerá

às horas do costume, as nuvens descarregarão as suas águas e as estrelas cintilarão nos longes do universo. Como sinal da nossa passagem restarão alguns ossos, alguns bocados de cimento, de metal e de plástico, até que um vulcão vomite sobre eles o seu fogo e os cubra piedosamente de cinzas.
Eu, com franqueza, preferiria para a humanidade um fim menos inglório. Não precisa de ser hoje, dia 13, mas agora que de novo se fala tanto no «Big Bang», Deus bem poderia fazer a graça de, com um «Little Bang», nos sacudir do planeta e pôr nele uma espécie menos desleixada."

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in Mazagran – (Quetzal) 2012;  o texto em Neerlandês é de 1992.