Naquelas histórias do príncipe e da rapariga de pé
descalço já ninguém acredita, pois há muito desapareceram os príncipes, e pé
descalço só lá para os confins da Índia ou do Bangladesh, lugares que nada têm
a ver com o nosso dia-a-dia, onde tudo se vai lentamente nivelando: os
príncipes a fingir de plebeus, os pobres gastando o pouco que têm para o não
parecerem.
Também desta vez esconderei os nomes, digamos então
que o Eduardo é um simpático quarentão com prédios de seu. Delfina, a sua cara
metade, terá menos, só que de certeza o vai ultrapassar quando receber a
herança da “Sanfoneira”, tia e madrinha cuja vida daria um romance camiliano,
pois entre artes da cama e do fogão levou um cónego e um ourives à sepultura,
ambos esgotados por apreciarem demais a culinária da dona, e não darem conta que
dia sim dia não o seu almoço incluía doses cavalares de pau de Cabinda,
A herança vai demorar, porque a “Sanfoneira” está rija
e de momento ocupada com o cerco ao Pinto
das Oficinas, mas não é isso que agora preocupa o Eduardo, sim a maluqueira que
a Delfina partilha com a madrinha: o medo dos incêndios.
No começo arriscava uns gracejos, mas descobriu que era
avisado mudar de táctica e assim, se por exemplo estão a ver o “Jornal das
Oito” e a televisão mostra um incêndio, agarra-a pelos ombros e imita
razoavelmente um medo solidário.
Embora se dê conta da hipocrisia, também sabe que todo
o cuidado é pouco se quer manter a paz doméstica e evitar percalços no que
respeita a guita da “Sanfoneira”. Contudo, não nega que há
ocasiões em que sente que quase “estoura”, como quando no Funchal ela o
surpreendeu ao tirar da mala uma escada de corda, diminuta mas resistente, que
a madrinha lhe oferecera. Sorriu do cuidado com que a pendurava na varanda,
deixou de sorrir ao vê-la zangada, mandando que fosse à recepção mudar de
quarto, dali a escada era curta, mil vezes lhe tinha dito que no máximo aceitava
o segundo piso, mais alto nem pensar.
Da ideia de mudarem para o condomínio já não fala, quando
foram vê-lo o comentário que fez foi que
com aquela altura o prédio era uma ratoeira, as escadas dos bombeiros só chegam
aos trinta e tal metros.
Por ela deixou de fumar, fez-lhe a vontade quando quis
que mudassem do gás para a electricidade, mas sente que já se inclina mais para
o divórcio do que para o psiquiatra:
- Acaba com a mania ou aceita as consequências. Não
acha?
Dispenso-me de responder, honro o princípio de que
“entre homem e mulher não metas a colher.”