Vem ele contar que a família
anda em rebuliço, há meses que as desavenças são constantes, a mãe a ameaçá-los
de que está a acabar as suas memórias, já assinou o contrato na Chiado Editora,
e filhos, filhas, noras, genros, netos e netas, nem todos vão ficar bem na
fotografia, por isso que se acautelem, não lhe cheguem muito a mostarda ao
nariz.
Ele é o Joãozinho, professor num
colégio e o único celibatário da tribo, a mãe é a Dona Carminda, os outros
serão uma dúzia, mas se os encontrar na rua creio que os não reconheço, pois
raras vezes lhes tenho falado.
Ali há dinheiro. A Mater
famílias, viúva há anos, segura a bolsa às mãos ambas, tudo faz para
merecer a alcunha de “Unhas de fome”, o seu presente de aniversário é sempre o
mesmo e igual para todos: uma caixa de chocolates Merci.
Cara de enterro, os rodeios do
costume, informado da minha saúde o Joãozinho senta-se, começa um relato destrambelhado
de queixas e acusações, esforça-se por me cair nas graças, mas não é preciso
uma perspicácia por aí além para se ver que não encaixamos. Fora ser um patarata,
irrita-me com aquele modo de que tudo o que diz termina em reticências.
É história antiga, a de no
século passado a Carminda e eu termos tido um caso que nos levaria ao altar, não fosse o ela
descobrir que o filho do Moita das conservas de Matosinhos era um seguro de
vida, enquanto comigo seria uma mão à frente outra atrás. Isso não impediu que
me convidasse para a festa do casamento, mantivéssemos a amizade, e desde que
enviuvou vem de vez em quando desabafar da ganância da família, que desespera de
vê-la com uma saúde de ferro e nada disposta a acelerar a herança.
Mais isto e mais aquilo, o
Joãozinho tossica, assoa-se, e evitando olhar-me finalmente abre o jogo. Não
tem a certeza, é antes uma suposição, mas pelo que lhe tem ouvido quando fala
dos meus escritos, poderia jurar que quando tiver o livro pronto a mãe me vai
pedir que o leia.
Espero que continue, mas ele
desvia os olhos, entrelaça os dedos, dá a impressão de que hesita ou se
arrependeu, até que finalmente, gaguejando, assegura que fala em nome de todos
e abre o jogo: poderia eu avisá-los, no caso em que o que a mãe escreve lhes
traga prejuízo? E arranjar-lhes uma cópia para que possam proceder?
É talvez porque gosto dos filmes
de Tarantino, mas há horas em que não me contenho: faço cara de mau, cerro os
olhos a sublinhar a ameaça. Desta também assim fiz, mas quando os voltei a
abrir estava só, e desde então do Joãozinho nem cheiro.