terça-feira, junho 18

Bilhetes (33)


Lá caí pela enésima vez na ratoeira dos ditirambos, dos louros, das hipérboles, e talvez também, por que não confessá-lo, para ver se ali finalmente aprenderia a receita que procuro desde que comecei a escrever ficção.
Ao folheá-lo na livraria já me corria água na boca: “Um livro de sonho”; “Um livro sofisticado, urticante, dramático”; “o autor tem um olfacto indiscutível para captar aquilo a que os alemães chamam zeitgeist; “nunca ninguém foi tão longe na representação do real”; “é um autor de génio.”
Nas quase trezentas páginas há um pouco de tudo, não vá o leitor sentir-se lesado por não ver lá a sua tara, o seu vício, a sua estupidez, os seus sonhos de adolescente débil mental, a pedofilia do cinquentão, o exotismo nipónico, os problemas do camembert, o gosto da vodca, a comparação das qualidades da espingarda Swarovski DS5 com as da Steyr Mannlicher, o que  sente ou não depois de engolir certas drogas, e também ainda os problemas muito actuais do aluguer de apartamentos. Só? Acha pouco? Claro que seria pouco, mas logo depois e à mistura vêm as orgias chiques em  casas de sonho, onde  esplêndidas e esplendorosas mulheres sempre ricas, sempre jovens e num cio eterno, copulam com mastins, corpulentos bulldogs ejaculam na garganta das ditas, enquanto em redor é um não findar de enrabanços, o todo embrulhado em aflições psíquicas, idas ao supermercado, ao psiquiatra, longos passeios em bosques, a problemática da criação de vacas…
O estilo, a construção, o vocabulário, o propósito, não desmereceriam de um adolescente transtornado, mas é erro meu, talvez até uma ponta de inveja, porque o autor continua a ser “um valor seguro, porventura um dos pouquíssimos representantes daquilo a que outrora chamávamos literatura”.