Cerra os olhos, a sua voz é um murmúrio: “Minha Mãe nasceu
numa dessas aldeias da Peneda de que não faz sentido dizer que nelas o tempo
tinha parado, porque o único tempo que lá se conhecia não era o dos séculos que
ao passar trazem progresso, mas o dos dias e das estações, monótono,
desesperante, uma maldição. Não se vivia ali à espera de um futuro melhor, mas
num dia-a-dia de desespero e míngua.
Em casa eram sete, o rebanho dava à justa para que não
morressem de fome, e como cada boca a menos era um alívio, chegada aos dez a
rapariga foi posta a servir. Dos rapazes, dois recolheu-os o Senhor quando
ainda gatinhavam, a outros dois valeu-lhes o acaso de ajudarem à missa um missionário
galego, que vendo-os atilados, expeditos no ritual, deu-se conta da potência e levou-os para o seminário
da Falperra.
Dependesse de minha Mãe, a história do mundo seria uma
incógnita. Estou para encontrar alguém que se lhe possa comparar na capacidade
de fintar perguntas, encolher os ombros, ou com um gesto de desprezo reduzir a
curiosidade alheia, a minha em particular, a uma forma de inconveniência. O
pouco que sei das suas circunstâncias descobri-o à custa de rezingar e daquela
teimosia de que as crianças têm o segredo, só por respeito não me aproprio do
dito que uma vez lhe ouvi a propósito de uma vizinha, que dava ideia de que
para se saber dela alguma coisa "tinha de se lha tirar do cu com um
gancho".
Serviu e amargurou, de certeza muito, pois sensibilidade
tinha de sobra, mas a salvação deve ter-lhe vindo do carácter e da ideia de que
ninguém seria capaz de lhe "pôr o pé no cachaço", expressão que
debitava como se tivesse defronte um inimigo.
De longe a longe, temendo os seus repentes, pois não se
ensaiava para me desancar, eu punha entre nós a distância precisa e voltava à
carga:
- Então pra onde é que foi servir a primeira vez? Quando era
miúda.
Há olhares que fuzilam, outros como o dela levam a acreditar
que no fundo resta em nós algo de selvagem, da fúria do bicho a que um dia
pertenceu um ou outro dos nossos cromossomas. Os olhos de minha Mãe ganhavam
então a fixidez dos da pantera pronta ao ataque, dava ideia de que tudo nela
era tensão e o seu propósito apenas um: estraçalhar.
Eu andaria pelos catorze, mas já tarimbara de pancadas e
bofetões, de modo que não somente os meus temores iam diminuindo, mas começara
a distinguir os sinais e a usar alguma estratégia.
Uma
tarde, vendo-a calma, arrisquei-me a repetir: - Pra onde é que foi servir? Diga
lá.”