sábado, abril 27

Há vidas sem passado


Cerra os olhos, a sua voz é um murmúrio: “Minha Mãe nasceu numa dessas aldeias da Peneda de que não faz sentido dizer que nelas o tempo tinha parado, porque o único tempo que lá se conhecia não era o dos séculos que ao passar trazem progresso, mas o dos dias e das estações, monótono, desesperante, uma maldição. Não se vivia ali à espera de um futuro melhor, mas num dia-a-dia de desespero e míngua.
Em casa eram sete, o rebanho dava à justa para que não morressem de fome, e como cada boca a menos era um alívio, chegada aos dez a rapariga foi posta a servir. Dos rapazes, dois recolheu-os o Senhor quando ainda gatinhavam, a outros dois valeu-lhes o acaso de ajudarem à missa um missionário galego, que vendo-os atilados, expeditos no ritual, deu-se  conta da potência e levou-os para o seminário da Falperra.
Dependesse de minha Mãe, a história do mundo seria uma incógnita. Estou para encontrar alguém que se lhe possa comparar na capacidade de fintar perguntas, encolher os ombros, ou com um gesto de desprezo reduzir a curiosidade alheia, a minha em particular, a uma forma de inconveniência. O pouco que sei das suas circunstâncias descobri-o à custa de rezingar e daquela teimosia de que as crianças têm o segredo, só por respeito não me aproprio do dito que uma vez lhe ouvi a propósito de uma vizinha, que dava ideia de que para se saber dela alguma coisa "tinha de se lha tirar do cu com um gancho".
Serviu e amargurou, de certeza muito, pois sensibilidade tinha de sobra, mas a salvação deve ter-lhe vindo do carácter e da ideia de que ninguém seria capaz de lhe "pôr o pé no cachaço", expressão que debitava como se tivesse defronte um inimigo.
De longe a longe, temendo os seus repentes, pois não se ensaiava para me desancar, eu punha entre nós a distância precisa e voltava à carga:
- Então pra onde é que foi servir a primeira vez? Quando era miúda.
Há olhares que fuzilam, outros como o dela levam a acreditar que no fundo resta em nós algo de selvagem, da fúria do bicho a que um dia pertenceu um ou outro dos nossos cromossomas. Os olhos de minha Mãe ganhavam então a fixidez dos da pantera pronta ao ataque, dava ideia de que tudo nela era tensão e o seu propósito apenas um: estraçalhar.
Eu andaria pelos catorze, mas já tarimbara de pancadas e bofetões, de modo que não somente os meus temores iam diminuindo, mas começara a distinguir os sinais e a usar alguma estratégia.
Uma tarde, vendo-a calma, arrisquei-me a repetir: - Pra onde é que foi servir? Diga lá.”