Não foi sonho, nem fantasia, aconteceu de verdade. Sabem-no
ambos, mas desde então ambos o calam, forçosamente são diferentes as
recordações de cada um e de como viveram o momento. Se bem que, na memória que
ele guarda, momento não é a palavra exacta nem adequada, continua incapaz de
recordar se foi uma hora, duas, talvez até menos, ou mais, pode ter sido um fim
de tarde ou ao começo da noite. Uma certeza mantém, a de que em circunstâncias
assim o tempo ganha outra dimensão, do mesmo modo que a memória, embora julgue
ter guardado tudo, por vezes chama instantes e detalhes que nessa altura lhe pareceram
diminutos, mas vistos a outra luz ganham realce, pesam mais, distorcem, mostram
outra realidade.
Então, nas horas sombrias, pergunta-se ele se o que recebeu
foi uma generosa, miraculosa, excepcional dádiva, ou deve traduzir o corte
brusco, o desaparecimento total dela, como um sinal da mudança dos tempos e dum
mundo que já nem sempre compreende, porque desnorteia a sua sensibilidade e
toma valores que negam os seus.