O romance do Orlando
Pelo que vejo e me dizem hoje acontece menos, as Letras nem
de longe competem com ser um ás na Internet, mas há duas ou três gerações eram
muitos os que, na febre da adolescência, sonhavam escrever um romance, certos
que daí lhes viria fama, proveito, e deixariam no mundo a sua pegada, ou pelo menos o nome na placa de uma rua.
O Orlando, que vai para quase um ano levamos a enterrar uma
manhã de fortes aguaceiros, não só tinha
acalentado o sonho de ser escritor, como estava tão certo do sucesso que muitas
vezes o anunciava, dando a entender que bastava esperarmos um mês ou dois e, em
prova de amizade, a cada um de nós ofereceria uma cópia do manuscrito. Críticas
ou sugestões eram bem-vindas, acrescentava ele, embora a ironia do seu sorriso
reveleasse que tinha em fraca conta a nossa capacidade literária.
Como nunca mais chegava, esse mês ou dois tinha-se tornado
primeiro uma anedota, mas o tempo passava, ouvíamos aquilo com um encolher de
ombros e, desculpando-lhe a mania, mudava-se de assunto.
À volta de um mês depois do enterro, o Barbosa, de todos o
mais íntimo do falecido, telefonou a dizer que no domingo seguinte nos
convidava para almoçar, pois tinha uma novidade. Seria ‘en petit comité’ – o Barbosa é do tempo em que o Francês era a
língua chique – só os quatro do campismo, e esperava que guardássemos segredo,
porque o assunto era delicado.
Fomos pontuais, escolhemos uma mesa num canto do restaurante
e, sempre bom mestre-de-cerimónias, o Joaquim Barbosa aguardou que nos
sentássemos, fez uma pausa, anunciando depois: - Afinal o Orlando sempre escreveu um romance!
Ficámos a olhar meio descrentes, enquanto ele tirava do saco
o que parecia um caderno e o pôs na mesa com o vagar solene de um sacerdote que
prepara a missa, ao mesmo tempo que tossicava, dando a impressão de não se
sentir totalmente à vontade.
- Ora bem, vocês me dirão como se vai resolver isto. O que o
Orlando escreveu não é um romance, não tem enredo, são apontamentos,
historietas. Só que…
A hesitação e o modo como evitava encarar-nos era mau agouro,
mas finalmente lá se decidiu:
- Ele deve ter escrito isto para se vingar de alguém. Não dá
nomes, mas fala aqui de coisas que, enfim, percebe-se…
- Pode-se ler? – perguntou o Saraiva – Porque senão ficamos
a pensar…
O empregado veio com a lista e notei que o interesse que fingíamos
pelo menu escondia mal a nossa preocupação. Uns tinham tentado, outros
tinham conseguido, mas de uma maneira ou
doutra todos tínhamos traído o Orlando.