Muito sofrem os avôs
A harmonia entre as gerações é uma bênção, mas nunca ela foi
tão frágil como actualmente, disse-me o Saldanha numa conversa entre avôs,
tocando no assunto como por coincidência, mas na realidade menos curioso de ouvir
a minha opinião do que partilhar as suas preocupações.
Dá-se o caso de que por carácter, educação, o meio em que
nasceu, se criou, as ideias que professa e o seu catolicismo praticante, o Abílio
Saldanha é exemplar do cidadão conservador do século passado, o que faz com que
viva agora em constante azedume e num estado de mal disfarçada, mas permanente irritação.
Conta ele que se as coisas continurem da maneira como andam,
o mais certo é que acabe por fazer de surdo-mudo, pois com o filho, mas
sobretudo com o neto, importa pouco de que assunto se trate, qualquer troca de
ideias acaba em discórdia ou em silêncios de mau agouro.
Diz que não é tão conservador como o julgam e sabe bem que a
sociedade hoje, com as suas
espectaculares mudanças e a velocidade a que tudo acontece, pouco tem a ver com
a de há meio século, que a muitos há-de parecer mais distante do que o tempo
das caravelas, mas não devia ser motivo para tanta raiva e desentendimento.
- Ou deve? – perguntou ele, com o modo de que aceitaria mal que
o contradissesse.
Conhecendo-lhe o feitio, e sem vontade de sofrer a sua
irritação, encolhi os ombros, o que lhe pareceu concordância bastante para
falar da arrelia que lhe causa o neto, pois aos vinte e dois anos o rapaz tem
umas ideias e uma linguagem que o desnorteiam como cidadão, e mais ainda como o
avô compreensivo que se esforça por ser.
- No passado domingo, ao almoço, estávamos a falar desses
casos que agora acontecem por toda a parte, e eu disse que a culpa talvez não fosse
sempre dos homens, pois há ocasiões… Nem me deixou acabar! Que o machismo continua
a ser uma das grandes pragas da sociedade! Que a lei deve pôr fim às
diferenças, às desigualdades, a toda a forma de opressão a que as mulheres e as
minorias continuam sujeitas! O racismo idem, é urgente que seja eliminado duma
vez para sempre! De maneira violenta, se preciso for!
Claro que lhe dou desconto, na juventude somos excessivos em
quase tudo, mas o que me assusta no rapaz é o fanatismo, as certezas que tem.
Jura ele que precisamos doutra mentalidade, nos devemos entranhar do que foi o
sofrimento da escravatura, o que é viver na
América racista, a vergonha de haver
quem seja contra os refugiados.
Ouvi, calei, e é isso o que mais me dói: não poder ser
franco.