terça-feira, fevereiro 12

Muito sofrem os avôs


Muito sofrem os avôs

A harmonia entre as gerações é uma bênção, mas nunca ela foi tão frágil como actualmente, disse-me o Saldanha numa conversa entre avôs, tocando no assunto como por coincidência, mas na realidade menos curioso de ouvir a minha opinião do que partilhar as suas preocupações.
Dá-se o caso de que por carácter, educação, o meio em que nasceu, se criou, as ideias que professa e o seu catolicismo praticante, o Abílio Saldanha é exemplar do cidadão conservador do século passado, o que faz com que viva agora em constante azedume e num estado de mal disfarçada, mas permanente irritação.
Conta ele que se as coisas continurem da maneira como andam, o mais certo é que acabe por fazer de surdo-mudo, pois com o filho, mas sobretudo com o neto, importa pouco de que assunto se trate, qualquer troca de ideias acaba em discórdia ou em silêncios de mau agouro.
Diz que não é tão conservador como o julgam e sabe bem que a sociedade  hoje, com as suas espectaculares mudanças e a velocidade a que tudo acontece, pouco tem a ver com a de há meio século, que a muitos há-de parecer mais distante do que o tempo das caravelas, mas não devia ser motivo para tanta raiva e desentendimento.
- Ou deve? – perguntou ele, com o modo de que aceitaria mal que o contradissesse.
Conhecendo-lhe o feitio, e sem vontade de sofrer a sua irritação, encolhi os ombros, o que lhe pareceu concordância bastante para falar da arrelia que lhe causa o neto, pois aos vinte e dois anos o rapaz tem umas ideias e uma linguagem que o desnorteiam como cidadão, e mais ainda como o avô compreensivo que se esforça por ser.
- No passado domingo, ao almoço, estávamos a falar desses casos que agora acontecem por toda a parte, e eu disse que a culpa talvez não fosse sempre dos homens, pois há ocasiões… Nem me deixou acabar! Que o machismo continua a ser uma das grandes pragas da sociedade! Que a lei deve pôr fim às diferenças, às desigualdades, a toda a forma de opressão a que as mulheres e as minorias continuam sujeitas! O racismo idem, é urgente que seja eliminado duma vez para sempre! De maneira violenta, se preciso for!
Claro que lhe dou desconto, na juventude somos excessivos em quase tudo, mas o que me assusta no rapaz é o fanatismo, as certezas que tem. Jura ele que precisamos doutra mentalidade, nos devemos entranhar do que foi o sofrimento da escravatura, o que é viver na  América racista, a vergonha de  haver quem seja contra os refugiados.
Ouvi, calei, e é isso o que mais me dói: não poder ser franco.