terça-feira, junho 6

A minha mulher é um harém

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Misteriosa afirmação, a que o Aniceto (pseudónimo, claro) fez tempos atrás na cervejaria, onde costumamos encontrar os camaradas da Guiné: "Ninguém precisa de acreditar, mas às vezes acho que a  minha mulher é um harém!"
Fingimos não ouvir e mudámos de assunto, porque das duas uma: ou ele
desconhece o significado da palavra, ou atribui-lhe um estonteante e absurda qualidade. Tanto mais que a D. Noémia (também nome fingido, que o Aniceto foi campeão de judo e artes marciais), além de ir nos sessenta, é todo o avesso do que, quando as havia, e como nos mostram as pinturas antigas, se supõe fosse uma concubina de sultão.
Tem buço, voz forte, preferência por roupa de cabedal e, maldosamente, reconhece-se-lhe alguma semelhança com o boneco dos pneus Michelin. Fora esses particulares, ginga ao caminhar, arrasta o passo, pendem-lhe os cantos da boca num ar de desprezo, e porque essa especialidade da pastelaria lhe aperta o estômago e dá azia, fica de mau humor se alguém diz que gosta de pastéis de nata com canela,.
Todavia, isso é a aparência, a imagem pública, a D. Noémia que vemos entrar no café com o modo de quem frequenta estabelecimentos melhores, e está ali por acaso. Se reconhece um ou outro, acena um adeusinho para que se lhe notem os anéis e oiçam tilintar as pulseiras, e antes de se sentar roda sobre si mesma e olha a assistência, como se esperasse aplauso.
Na intimidade pode ser outra, de certeza é, pois ao dito de que quem vê caras não vê corações, talvez se possa acrescentar que também não vê camas. Mas a incógnita permanece e embaraça, custa manter um ar neutro na presença de alguém com aquele aspecto, e ao mesmo tempo imaginá-la nas acrobacias e variações do Kama Sutra.
"A minha mulher é um harém!" Ele só disse aquilo uma vez, e embora de facto não nos falte vontade de lhe pedir que esclareça, troque o dito em miúdos, sorrimos e abstemo-nos, porque se a explicação for tola lá se vai o gozo da fantasia. Além disso, porque lhe conhecemos o feitio, é bem capaz de levar a mal a curiosidade, e não se ensaia para, durante um tempo, deixar de vir às nossas confraternizações. O que nos custaria, porque mesmo de maus fígados, rabugento, sempre pronto a sentir-se malquisto ou prejudicado, o Aniceto é uma pérola de sujeito, e o mais capaz, entre nós, de manter aquele espírito de camaradagem que muito nos ajudou a sobreviver nas ‘bolanhas”, os pântanos da Guiné, e a escapar às emboscadas dos guerrilheiros, onde vimos morrer tantos camaradas.
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Publicado na DOMINGO CM