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Misteriosa afirmação, a que o Aniceto (pseudónimo,
claro) fez tempos atrás na cervejaria, onde costumamos encontrar os camaradas
da Guiné: "Ninguém precisa de acreditar, mas às vezes acho que a minha mulher é um harém!"
Fingimos não ouvir e mudámos de assunto, porque das
duas uma: ou ele
desconhece o significado da palavra, ou atribui-lhe um
estonteante e absurda qualidade. Tanto mais que a D. Noémia (também nome
fingido, que o Aniceto foi campeão de judo e artes marciais), além de ir nos
sessenta, é todo o avesso do que, quando as havia, e como nos mostram as
pinturas antigas, se supõe fosse uma concubina de sultão.
Tem buço, voz forte, preferência por roupa de cabedal e,
maldosamente, reconhece-se-lhe alguma semelhança com o boneco dos pneus
Michelin. Fora esses particulares, ginga ao caminhar, arrasta o passo, pendem-lhe
os cantos da boca num ar de desprezo, e porque essa especialidade da pastelaria
lhe aperta o estômago e dá azia, fica de mau humor se alguém diz que gosta de
pastéis de nata com canela,.
Todavia, isso é a aparência, a imagem pública, a D.
Noémia que vemos entrar no café com o modo de quem frequenta estabelecimentos
melhores, e está ali por acaso. Se reconhece um ou outro, acena um adeusinho
para que se lhe notem os anéis e oiçam tilintar as pulseiras, e antes de se
sentar roda sobre si mesma e olha a assistência, como se esperasse aplauso.
Na intimidade pode ser outra, de certeza é, pois ao
dito de que quem vê caras não vê corações, talvez se possa acrescentar que também
não vê camas. Mas a incógnita permanece e embaraça, custa manter um ar neutro
na presença de alguém com aquele aspecto, e ao mesmo tempo imaginá-la nas
acrobacias e variações do Kama Sutra.
"A
minha mulher é um harém!" Ele só disse aquilo uma vez, e embora de facto
não nos falte vontade de lhe pedir que esclareça, troque o dito em miúdos, sorrimos
e abstemo-nos, porque se a explicação for tola lá se vai o gozo da fantasia. Além
disso, porque lhe conhecemos o feitio, é bem capaz de levar a mal a curiosidade,
e não se ensaia para, durante um tempo, deixar de vir às nossas
confraternizações. O que nos custaria, porque mesmo de maus fígados, rabugento,
sempre pronto a sentir-se malquisto ou prejudicado, o Aniceto é uma pérola de
sujeito, e o mais capaz, entre nós, de manter aquele espírito de camaradagem
que muito nos ajudou a sobreviver nas ‘bolanhas”, os pântanos da Guiné, e a
escapar às emboscadas dos guerrilheiros, onde vimos morrer tantos camaradas....
Publicado na DOMINGO CM