(Clique)
Às vezes tem a
impressão de que vai ficar louca, as imagens passando e repassando como se tudo
esteja a acontecer, dando-lhe ideia de um poder oculto que a atormenta, como se
os doze anos de prisão não tenham sido pena suficiente.
Vê-se a caminhar
sem pressa, distraída, olhando em volta, sensível ao ruído.
- Mais alguns ou
só estes? Quer dos outros? E maçãs? Um quilo?
- Desses já não
temos.
- Quanto disse?
Seis euros? Cada ou o par?
Por ser dia de
feira o largo encontrava-se cheio de gente barulhenta, apressada, indiferente
aos encontrões, ela apanhando bocados de frases, restos de conversa. Um momento
antes tinha ouvido um homem desesperado que, agitando os braços, enfrentava
duas mulheres de idade:
- Que posso eu
fazer? Ela diz que não casa! A gente pede-lhe, ameaça, e a resposta é não! Que
nem à força!
Dois turistas
tinham parado, preocupados com o que lhes parecia uma desordem, mas era só um
ajuntamento em volta de um barateiro que vendia lençóis e cobertores aos gritos
de “São os últimos!”
Ao sair de casa,
não tinha tido intenção de passar por ali. Virara à esquerda, para o largo, pela
mesma razão com que podia ter virado à direita, talvez inconscientemente
assustada ao ver que um grupo de soldados bloqueava a rua do lado do rio. Tinha
ódio a todas as formas de violência, mas a violência estava em toda a parte.
Nos soldados ao fundo da rua. Na gente apressada, uns empurrando os outros,
como desejosos de provocar uma reacção que lhes permitisse livrar-se da raiva
que só a custo continham.
Tentou caminhar
pelo passeio, onde havia menos gente, mas logo uma mendiga a agarrou pelo
braço:
- Dê, minha
senhora! Dê uma esmolinha a quem tem fome! Dê, minha senhora! Ajude os meus
meninos!
Com um movimento
brusco libertou-se da mão, acelerou o passo, ia quase a correr quando entrou no
café.
- O costume? -
perguntou o empregado que a conhece há anos.
- Sim. E uma água.
Estranhou que o
estabelecimento estivesse quase vazio. Em geral àquela hora, e sobretudo nos
dias de feira, não havia uma mesa livre.
Solícito, o
empregado passou o pano pelo tampo da mesa antes de poisar a xícara, o copo e a
garrafa.
Agradeceu com um
sorriso e um gesto, mas ambos tão estranhos, ausentes, que o empregado se
deteve: - A senhora sente-se mal?
As palavras
causaram-lhe o choque de reviver o pesadelo. Tinha esperado que os comprimidos
fizessem efeito, depois tapara o rosto do Fernando com a almofada e ele morrera
quieto, como quem adormece.
...
Publicado na DOMINGO CM.