segunda-feira, maio 29

A almofada do pesadelo

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Às vezes tem a impressão de que vai ficar louca, as imagens passando e repassando como se tudo esteja a acontecer, dando-lhe ideia de um poder oculto que a atormenta, como se os doze anos de prisão não tenham sido pena suficiente.
Vê-se a caminhar sem pressa, distraída, olhando em volta, sensível ao ruído.
- Mais alguns ou só estes? Quer dos outros? E maçãs? Um quilo?
- Desses já não temos.
- Quanto disse? Seis euros? Cada ou o par?
Por ser dia de feira o largo encontrava-se cheio de gente barulhenta, apressada, indiferente aos encontrões, ela apanhando bocados de frases, restos de conversa. Um momento antes tinha ouvido um homem desesperado que, agitando os braços, enfrentava duas mulheres de idade:
- Que posso eu fazer? Ela diz que não casa! A gente pede-lhe, ameaça, e a resposta é não! Que nem à força!
Dois turistas tinham parado, preocupados com o que lhes parecia uma desordem, mas era só um ajuntamento em volta de um barateiro que vendia lençóis e cobertores aos gritos de “São os últimos!”
Ao sair de casa, não tinha tido intenção de passar por ali. Virara à esquerda, para o largo, pela mesma razão com que podia ter virado à direita, talvez inconscientemente assustada ao ver que um grupo de soldados bloqueava a rua do lado do rio. Tinha ódio a todas as formas de violência, mas a violência estava em toda a parte. Nos soldados ao fundo da rua. Na gente apressada, uns empurrando os outros, como desejosos de provocar uma reacção que lhes permitisse livrar-se da raiva que só a custo continham.
Tentou caminhar pelo passeio, onde havia menos gente, mas logo uma mendiga a agarrou pelo braço:
- Dê, minha senhora! Dê uma esmolinha a quem tem fome! Dê, minha senhora! Ajude os meus meninos!
Com um movimento brusco libertou-se da mão, acelerou o passo, ia quase a correr quando entrou no café.
- O costume? - perguntou o empregado que a conhece há anos.
- Sim. E uma água.
Estranhou que o estabelecimento estivesse quase vazio. Em geral àquela hora, e sobretudo nos dias de feira, não havia uma mesa livre.
- Ora aqui tem o galãozinho e a aguazinha.
Solícito, o empregado passou o pano pelo tampo da mesa antes de poisar a xícara, o copo e a garrafa.
Agradeceu com um sorriso e um gesto, mas ambos tão estranhos, ausentes, que o empregado se deteve: - A senhora sente-se mal?
As palavras causaram-lhe o choque de reviver o pesadelo. Tinha esperado que os comprimidos fizessem efeito, depois tapara o rosto do Fernando com a almofada e ele morrera quieto, como quem adormece.
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Publicado na DOMINGO CM.

quinta-feira, maio 25

segunda-feira, maio 15

O fandango da vida

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Conhecemo-nos há uma eternidade, giramos nos mesmos círculos, não gostamos um do outro mas mantemos o sorriso, a cortesia, informamo-nos calorosamente do bem-estar mútuo, trocando aquelas banalidades que são o lubrificante do trato social.
Ela é o que se costuma chamar um caso à parte e, mesmo de talento mediano mas bom observador, um qualquer cenarista facilmente a transformaria num inesquecível e cómico personagem de teatro.
Agita os braços e arregala os olhos, mesmo quando anuncia o comezinho. Também é muito seu o tique de, quando conversa, pôr os dedos em pinça e tocar o braço do interlocutor, dando a impressão de que o vai beliscar. Tinge os cabelos cor de cenoura, e com isso, o bâton de um vermelho agressivo, o exagero das sobrancelhas, os bonés de quadradinhos, calças de seda muito largas, sapatos muito bicudos, consegue um bom resultado na aparência com Popov, o falecido e famoso palhaço russo.
É tonta. As suas gargalhadas são espasmódicas. Se visita casa onde há piano insiste em tocar Chopin, que toca mal, muito mal. Adora falar francês, e na Gália inteira não há deus que lhe acuda quando desata aos pontapés à pronúncia e à gramática da língua de Astérix.
Jura que nunca lhe faltaram namorados. Se quiserem pode provar que na faculdade chegou a ser uma das odaliscas no harém do UTR, garanhão famoso, mas nunca foi de ligações duradouras. Casamento nem pensar. Garante que os casais felizes se contam pelos dedos de uma mão, e  mesmo esses nunca escapam aos dias em que em que o arrependimento vem ao de cima, mas então já é tarde. Por isso dá vivas à liberdade, nas suas palavras um bem que, seja na vida de cada um, no emprego ou na política, é o mais inestimável de todos.  Mas se na companhia em que está vê homem que lhe apetece, esquece os sessenta  e tantos, põe-se em requebros e trejeitos, faz beicinhos de menina.
Entre as pechas que lhe conheço, uma que sobremodo irrita é a de não devolver os livros que pede emprestados. Também gosta dos copos, mas aí há que confessar que então se torna engraçada, e sapateia como se tivesse nascido em Cádis, fazendo umas estonteantes demonstrações do fandango.
Telefonou a contar que tinha ido ao médico, porque há tempos se queixava de umas coisas vagas, mal-estar, o corpo inchado, às vezes tonturas. Das análises e dos exames concluíram que sofre de um tipo de leucemia muito agressivo e dão-lhe só meses de vida. Disse aquilo num tom calmo, eu repliquei com banalidades de que me envergonho e sinto remorso.
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Publicado na DOMINGO CM.

sexta-feira, maio 12

Salazar curioso


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Página de Na Sombra do Poder - Pedro Feytor Pinto

Convite

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quarta-feira, maio 10

terça-feira, maio 9

A Indonésia é longe, não é notícia




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Basuki ‘Ahok’ Tjahaja Purnama, cristão, ex-governador de Djakarta, a capital da Indonésia, citou o Corão para provar que os muçulmanos podem votar num não-muçulmano. Essa ousadia valeu-lhe uma pena de dois anos de prisão. 


segunda-feira, maio 8

Brad Pitt e Angelina Jolie

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Vai fazer trinta e quatro, separa-nos mais de meio século, é compreensível que seja diferente uma boa parte dos nossos interesses. Não que ele se desse conta ou isso me incomodasse, mas estranhei e franzi o sobrolho quando perguntou se eu tinha lido que com Angelina Jolie e Brad Pitt parece que as coisas continuam a correr mal.
Longe estava de imaginar que o intróito não era para o que eu julgava, tão-pouco, se mo pedisse, lhe saberia dar opinião ou conselho, adepto que sou do provérbio “entre marido e mulher não metas a colher”.
Casaram há cinco anos e vivem a vida alegre de quem tem saúde, gosta do que faz e desconhece aflições de fim do mês. Com boa cabeça, fisicamente atraentes, formam um par que, onde quer que chegue, restaurante, teatro, sala cheia, leva uns a voltar-se, outros franzem os lábios, incapazes de esconder a inveja.
Conta ele agora que no Verão passado, em Barcelona, um dia em que tinham sido convidados para uma festa em casa de amigos, despediu-se da mulher no hotel, dizendo que ia dar uma volta, de facto acanhado em lhe dizer que era para comprar uma gravata que lhe agradara.
Chegou ele primeiro, ela cientemente atrasada, como sempre faz, certa do melhor efeito.
- A Marta é muito bonita, mas quer acreditar que a não reconheci? Palavra. Não reconheci a minha mulher. Não era só o vestido, que nunca lhe tinha visto, mas a maquilhagem, o penteado, a altivez!... Não imagino como conseguira aquilo, mas era uma metamorfose total, no meio daquela gente tinha mesmo star quality!
Tossica, pega no copo e volta a pousá-lo sem beber, é como se hesitasse em continuar. Depois lá se decide, mas o relato sai-lhe emaranhado e por isso resumo.
Na manhã seguinte surpreendeu-se a pensar que Marta lhe parecia menos bonita, nem de longe tinha semelhança com a mulher espectacular em que se transformara para os amigos.
Tempos depois, como se fosse sem importância, pediu-lhe que se vestisse e penteasse como naquela noite em Barcelona. Ela recusou e, às gargalhadas, disse-lhe que se acautelasse com fetichismos. Tinha voltado ao assunto duas ou três vezes, mas ela apenas sorrira, dando-lhe a impressão que fazia do caso uma prova de força. De verdade desde esse dia algo mudou, a relação é diferente, é como se tivessem perdido a impulsividade que os unia.
Olha-me, como quem espera uma opinião ou um conselho, mas não sei que dizer. Depois, acanhado, ou talvez apenas para quebrar o silêncio em que ficámos, volta a falar de Brad Pitt e Angelina Jolie.
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Publicado na DOMINGO CM.