segunda-feira, maio 15

O fandango da vida

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Conhecemo-nos há uma eternidade, giramos nos mesmos círculos, não gostamos um do outro mas mantemos o sorriso, a cortesia, informamo-nos calorosamente do bem-estar mútuo, trocando aquelas banalidades que são o lubrificante do trato social.
Ela é o que se costuma chamar um caso à parte e, mesmo de talento mediano mas bom observador, um qualquer cenarista facilmente a transformaria num inesquecível e cómico personagem de teatro.
Agita os braços e arregala os olhos, mesmo quando anuncia o comezinho. Também é muito seu o tique de, quando conversa, pôr os dedos em pinça e tocar o braço do interlocutor, dando a impressão de que o vai beliscar. Tinge os cabelos cor de cenoura, e com isso, o bâton de um vermelho agressivo, o exagero das sobrancelhas, os bonés de quadradinhos, calças de seda muito largas, sapatos muito bicudos, consegue um bom resultado na aparência com Popov, o falecido e famoso palhaço russo.
É tonta. As suas gargalhadas são espasmódicas. Se visita casa onde há piano insiste em tocar Chopin, que toca mal, muito mal. Adora falar francês, e na Gália inteira não há deus que lhe acuda quando desata aos pontapés à pronúncia e à gramática da língua de Astérix.
Jura que nunca lhe faltaram namorados. Se quiserem pode provar que na faculdade chegou a ser uma das odaliscas no harém do UTR, garanhão famoso, mas nunca foi de ligações duradouras. Casamento nem pensar. Garante que os casais felizes se contam pelos dedos de uma mão, e  mesmo esses nunca escapam aos dias em que em que o arrependimento vem ao de cima, mas então já é tarde. Por isso dá vivas à liberdade, nas suas palavras um bem que, seja na vida de cada um, no emprego ou na política, é o mais inestimável de todos.  Mas se na companhia em que está vê homem que lhe apetece, esquece os sessenta  e tantos, põe-se em requebros e trejeitos, faz beicinhos de menina.
Entre as pechas que lhe conheço, uma que sobremodo irrita é a de não devolver os livros que pede emprestados. Também gosta dos copos, mas aí há que confessar que então se torna engraçada, e sapateia como se tivesse nascido em Cádis, fazendo umas estonteantes demonstrações do fandango.
Telefonou a contar que tinha ido ao médico, porque há tempos se queixava de umas coisas vagas, mal-estar, o corpo inchado, às vezes tonturas. Das análises e dos exames concluíram que sofre de um tipo de leucemia muito agressivo e dão-lhe só meses de vida. Disse aquilo num tom calmo, eu repliquei com banalidades de que me envergonho e sinto remorso.
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Publicado na DOMINGO CM.