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Conhecemo-nos há
uma eternidade, giramos nos mesmos círculos, não gostamos um do outro mas
mantemos o sorriso, a cortesia, informamo-nos calorosamente do bem-estar mútuo,
trocando aquelas banalidades que são o lubrificante do trato social.
Ela é o que se
costuma chamar um caso à parte e, mesmo de talento mediano mas bom observador,
um qualquer cenarista facilmente a transformaria num inesquecível e cómico
personagem de teatro.
Agita os braços e
arregala os olhos, mesmo quando anuncia o comezinho. Também é muito seu o tique
de, quando conversa, pôr os dedos em pinça e tocar o braço do interlocutor,
dando a impressão de que o vai beliscar. Tinge os cabelos cor de cenoura, e com
isso, o bâton de um vermelho agressivo, o exagero das sobrancelhas, os bonés de
quadradinhos, calças de seda muito largas, sapatos muito bicudos, consegue um
bom resultado na aparência com Popov, o falecido e famoso palhaço russo.
É tonta. As suas
gargalhadas são espasmódicas. Se visita casa onde há piano insiste em tocar
Chopin, que toca mal, muito mal. Adora falar francês, e na Gália inteira não há
deus que lhe acuda quando desata aos pontapés à pronúncia e à gramática da
língua de Astérix.
Jura que nunca lhe
faltaram namorados. Se quiserem pode provar que na faculdade chegou a ser uma
das odaliscas no harém do UTR, garanhão famoso, mas nunca foi de ligações
duradouras. Casamento nem pensar. Garante
que os casais felizes se contam pelos dedos de uma mão, e mesmo esses nunca escapam aos dias em que em
que o arrependimento vem ao de cima, mas então já é tarde. Por isso dá vivas à
liberdade, nas suas palavras um bem que, seja na vida de cada um, no emprego ou
na política, é o mais inestimável de todos. Mas se na companhia em que está vê homem que
lhe apetece, esquece os sessenta e
tantos, põe-se em requebros e trejeitos, faz beicinhos de menina.
Entre as pechas
que lhe conheço, uma que sobremodo irrita é a de não devolver os livros que pede
emprestados. Também gosta dos copos, mas aí há que confessar que então se torna
engraçada, e sapateia como se tivesse nascido em Cádis, fazendo umas
estonteantes demonstrações do fandango.
Telefonou a contar
que tinha ido ao médico, porque há tempos se queixava de umas coisas vagas,
mal-estar, o corpo inchado, às vezes tonturas. Das análises e dos exames
concluíram que sofre de um tipo de leucemia muito agressivo e dão-lhe só meses
de vida. Disse aquilo num tom calmo, eu repliquei com banalidades de que me
envergonho e sinto remorso.
...
Publicado na DOMINGO CM.