sexta-feira, outubro 30

quinta-feira, outubro 29

Despenteando Parágrafos

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Onésimo Teotónio Almeida
Brown University
Rhode Island
EUA

Meu caro Onésimo,
Vivemos aqui o que antigamente se chamavam tempos conturbados, mas de facto são apenas a excitação parola causada pelos desvarios de quem não nasceu para, como estadista, segurar as rédeas do Estado, e tem da política noções de merceeiro. Assim teremos amanhã um governo que vai ser "chumbado",  chegará depois outro ao qual, a curto ou médio prazo, acontecerá o mesmo. Um terceiro ou quarto irá de mão estendida pedir à Europa uns trocos para o café e o cigarrinho.
Triste destino o nosso, miserável caterva a que nos desgoverna. Sobre esses, mais uma vez me encosto a Fialho, que os retratava escrevendo que "as papadas oleosas dizem nutrições prevaricadas, apoplexias de bílis odienta, intrigas rábidas, cobiças, e satiríases secretas de amor e de vinho a horas perigosas."
Bem sonhamos, bem pedimos ao Altíssimo, mas de nada vale, e desculpe V. o desabafo, que o meu propósito era dizer-lhe que vou a meio do seu Despenteando Parágrafos, e entre gargalhadas, sorrisos, sustos e exclamações, me tenho divertido, aprendido, dado conta de que perdi o comboio do verdadeiro saber.
Já é tarde para que isso obste, e a minha idade também se presta pouco às grandes excursões, mesmo as do espírito, mas logo de entrada desopilei, porque na universidade muito sofri com colegas que se excitavam com as nebulosidades de que V. dá conta.
Das excelências axiológicas do bremontismo como hermenêutica da discursividade pós-moderna – Perspectivas epistemológico-pedagógicas é um verdadeiro tratado humorístico e, lendo-o, recordei, meio sufocado de riso, os colegas que também falavam no tom do ensaísta que refere e nos diz: "Encontrar um texto poético é percorrer este estranho trajecto em que transcendência se esvanece, e em que uma ética irredutível à moral-social-linguística é declinada sem a astúcia que a recusa, mas na necessidade que a reconhece: travessia de uma obsessão".
Traz-me V. também à memória os colegas que juravam por Saussure, Lacan, Althusser, Derrida, que faziam gráficos e esquemas a demonstrar que na poesia de Pessoa era diferente o impacto sensorial entre os versos que começavam por vogais em vez de consoantes. Sofri com eles, mas há muito o Senhor deu a uns a reforma, a outros o eterno descanso, e eu cá vou indo na paz do mesmo Senhor.
Com As modas que vêm de Paris também penei. À minha volta era só Nouveau Roman,  romance com princípio, meio, fim era absolument passé, contava o que em desordem borbulhava nas cabecinhas.
Dá V. umas cacetadas em Ou humor(ou ausência de) no Camilo polémico, e acho que tem alguma razão, mas voltando a um ou outro dos nossos políticos também eu gostaria de lhes perguntar, como o homem de São Miguel de Seide: "A propósito, amigo, há quanto tempo conservas de escabeche a inteligência?"
Vou a meio do seu livro – logo à noite ataco Da (a) crítica textual e do metatexto – e já me dei conta de que não devo mexer à ligeira em Wittgenstein ou no Tractatus Logico-Philosophicus.
Um dia lhe falarei do resto, mas sabendo do seu gosto por elas, deixe que termine com uma anedota antiga(é-o menos do que parece) que me ocorre e ilustra o que acontece a quem sabe pouco.
Passada a agitação do 25 de Abril, ao findar a década de 70 o governo começou a tomar medidas para modernizar e dinamizar, decidindo-se então que à semelhança dos países avançados se introduzisse a informática na aparelhagem do Estado. Os melhores computadores vinham dos Estados Unidos, e assim se encomendou um dos mais potentes à IBM. Querendo ao mesmo tempo dar no ramo um incentivo à indústria nacional, fez-se a encomenda de um computador à Fábrica Oliva, de São João da Madeira, que até então se especializara no fabrico das máquinas de costura.
Recebidos e montados lado a lado os computadores de ambas as empresas, constatou-se que o aparelho americano possuía uma formidável memória, enquanto que o nacional tinha apenas uma vaga ideia.
Receba V. um abraço
José

terça-feira, outubro 27

São só embrulho

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Em todos os partidos políticos se misturam os bons com os trafulhas, os ingénuos com os cínicos, os ladrões com os malabaristas, os ignorantes e os sabidos, pelo que de nada adianta apontar o dedo. Todos são da mesma massa, e embora sejam os políticos quem nos governa, não é deles que devemos esperar remédio e salvação, mas de nós próprios, do que temos de consciência cívica e social.
É de mau aviso a alegria dos que vêem a casa do vizinho a arder, o mesmo vale para a chança dos que esperam os confortos do poleiro. E desenganem-se uns e outros, pois é tudo de pouca monta e curta duração, no muito os clássicos dois dias, porque um cancrozito, um descuido na passadeira, e acaba o arraial.
Portanto, assim sendo, e de facto assim é, de que raio adiantam as palhaçadas, as soberbas, a ilusão de que semelhante gente deixa nome na História? Quando muito deixa-o nos jornais de hoje, os mesmos com que amanhã na Ribeira se embrulhará o peixe.

sábado, outubro 24

De luto

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Pouco se me dá que quem nele manda seja da direita, da esquerda, do centro, de cima ou de baixo, porque esse mandar é aparência, fingimento, um espectáculo de robertos.
Mas ponho luto porque o meu país só o é de verdade nos montes e nas praias, na gente. No resto continua a ser bambochata, um país faz de conta.
...........
Foto: Eugene Smith
 

quarta-feira, outubro 21

"As Primeiras Coisas"

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Parabéns ao Bruno, sobre quem dois anos atrás aqui se falou. Corram a ler As Primeiras Coisas aqueles que na literatura sabem separar o trigo do joio, e distinguem a qualidade.

terça-feira, outubro 20

Na autoestrada


No último sábado, ao começo da tarde, numa estação de serviço na autoestrada Poitiers-Bordéus, mesmo aqueles que, como eu, têm pelos automóveis um interesse sobretudo prático, embasbacavam para o Mercedes de dois lugares junto da bomba. A elegância das linhas, a aerodinâmica, o luxo, o acabamento, tudo nele ressudava uma qualidade que instintivamente se sente ao alcance de poucos, e ao deixar a bomba, para ir estacionar mais adiante, o som do motor, embora reduzido, falava de uma incrível potência.
Saiu dele um casal à volta dos trinta. Pela atitude, os gestos, no modo como conversavam, e até na maneira de fumar, tudo neles falava de gerações de dinheiro e elegância, vidas cheias de certezas, segurança e poderio.
Qualquer coisa, todavia, indicava que se retinham, se davam conta que estavam em público, obrigando-se a travar um gesto, a crispar as feições, a fingir um súbito interesse pelo que os rodeava.
No momento em que passei, a imagem que deles guardo é de que lhes seria difícil manter a contenção, parecendo antes estátuas do que gente de carne e osso.
A autoestrada atravessa os vinhedos de Cognac e de Bordéus, não é exagero dizer que o sol doura as videiras, que há beleza e serenidade na paisagem,  diverte aperceber aqui e ali um lugarejo que recorda os romances de Simenon, tão competente na mistura das paixões e dos crimes.
À minha frente não se via nenhum, e atrás, espaçados, viriam quatro ou cinco carros, quando de súbito, como se realmente voasse, apercebi o Mercedes no retrovisor. No mesmo segundo tinha-nos ultrapassado.
Já noutras ocasiões me dei conta de que o tempo é uma estranha dimensão e nem sempre se mede de igual maneira. O Mercedes pareceu que travava, rodopiou em slow motion duas ou três vezes, foi em voo planado sobre o separador e deteve-se no talude, as rodas para o ar.
Paramos, corremos todos a acudir, uns chamando o 112, mas logo nos demos conta de que era inútil a pressa.

sexta-feira, outubro 16

"Beijo Técnico"

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Eduardo Pitta fala dele aqui e está certo o que diz, mas em minha opinião podia juntar uma estrêla às três com que o avalia. A "discreta ironia nos interstícios da prosa", e a qualidade desta, valem bem quatro.

quinta-feira, outubro 15

À espera que nos oiçam

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É estranha, mas compreensível, a decepção que segue à pergunta que nos fazemos (pelo menos eu faço) sobre o propósito, a utilidade, o interesse deste comunicar com anónimos e estranhos que nos encontram ao acaso de um clique, ou quando por descuido o dedo mexe na tecla errada.
Antigamente levava o vento as palavras em certa direcção, iam por carta ou telegrama, mas nunca mais longe do que o outro lado do planeta. Hoje vão para toda a parte, chegam talvez às luas de Saturno, onde, se lá há gente ou andróides, me pergunto, no caso de que as entendam, o que com elas farão.
O mais certo é que nada. Mas por cá não paramos de comunicar, cheios de convicções e certezas, esperançado de que alguém nos oiça, supondo grande, importante, única, a abençoada Terra. E nós os seus privilegiados moradores
Mas da Terra já Eça de Queiroz n 'A Relíquia nos desiludiu: "A Terra! que é ella senão um montão de cousas pôdres, rolando pelos céus com basófias d'astro?"