(Clique)
Onésimo Teotónio Almeida
Brown University
Rhode Island
EUA
Meu caro Onésimo,
Vivemos aqui o que antigamente se chamavam tempos
conturbados, mas de facto são apenas a excitação parola causada pelos desvarios
de quem não nasceu para, como estadista, segurar as rédeas do Estado, e tem da
política noções de merceeiro. Assim teremos amanhã um governo que vai ser
"chumbado", chegará depois
outro ao qual, a curto ou médio prazo, acontecerá o mesmo. Um terceiro ou
quarto irá de mão estendida pedir à Europa uns trocos para o café e o
cigarrinho.
Triste destino o nosso, miserável caterva a que nos desgoverna.
Sobre esses, mais uma vez me encosto a Fialho, que os retratava escrevendo que "as papadas oleosas dizem nutrições prevaricadas,
apoplexias de bílis odienta, intrigas rábidas, cobiças, e satiríases secretas
de amor e de vinho a horas perigosas."
Bem sonhamos, bem pedimos ao Altíssimo, mas de nada vale,
e desculpe V. o desabafo, que o meu propósito era dizer-lhe que vou a meio do
seu Despenteando Parágrafos, e entre gargalhadas,
sorrisos, sustos e exclamações, me tenho divertido, aprendido, dado conta de
que perdi o comboio do verdadeiro saber.
Já é tarde para que isso obste, e a minha idade também se
presta pouco às grandes excursões, mesmo as do espírito, mas logo de entrada
desopilei, porque na universidade muito sofri com colegas que se excitavam com
as nebulosidades de que V. dá conta.
Das excelências
axiológicas do bremontismo como hermenêutica da discursividade pós-moderna –
Perspectivas epistemológico-pedagógicas
é um verdadeiro tratado humorístico e, lendo-o, recordei, meio sufocado de
riso, os colegas que também falavam no tom do ensaísta que refere e nos diz:
"Encontrar um texto poético é percorrer este estranho trajecto em que
transcendência se esvanece, e em que uma ética irredutível à
moral-social-linguística é declinada sem a astúcia que a recusa, mas na
necessidade que a reconhece: travessia de uma obsessão".
Traz-me V. também à memória os colegas que juravam por
Saussure, Lacan, Althusser, Derrida, que faziam gráficos e esquemas a demonstrar
que na poesia de Pessoa era diferente o impacto sensorial entre os versos que
começavam por vogais em vez de consoantes. Sofri com eles, mas há muito o
Senhor deu a uns a reforma, a outros o eterno descanso, e eu cá vou indo na paz
do mesmo Senhor.
Com As modas que
vêm de Paris também penei. À minha volta era só Nouveau Roman, romance com
princípio, meio, fim era absolument passé,
contava o que em desordem borbulhava nas cabecinhas.
Dá V. umas cacetadas em Ou humor(ou ausência de) no Camilo polémico, e acho que tem alguma
razão, mas voltando a um ou outro dos nossos políticos também eu gostaria de lhes
perguntar, como o homem de São Miguel de Seide: "A propósito, amigo, há
quanto tempo conservas de escabeche a inteligência?"
Vou a meio do seu livro – logo à noite ataco Da (a) crítica textual e do metatexto – e
já me dei conta de que não devo mexer à ligeira em Wittgenstein ou no Tractatus Logico-Philosophicus.
Um dia lhe falarei do resto, mas sabendo do seu gosto por
elas, deixe que termine com uma anedota antiga(é-o menos do que parece) que me
ocorre e ilustra o que acontece a quem sabe pouco.
Passada a agitação do 25 de Abril, ao findar a década de
70 o governo começou a tomar medidas para modernizar e dinamizar, decidindo-se
então que à semelhança dos países avançados se introduzisse a informática na
aparelhagem do Estado. Os melhores computadores vinham dos Estados
Unidos, e assim se encomendou um dos mais potentes à IBM. Querendo ao mesmo
tempo dar no ramo um incentivo à indústria nacional, fez-se a encomenda de um
computador à Fábrica Oliva, de São João da Madeira, que até então se
especializara no fabrico das máquinas de costura.
Recebidos e montados lado a lado os computadores de ambas
as empresas, constatou-se que o aparelho americano possuía uma formidável memória,
enquanto que o nacional tinha apenas uma vaga ideia.
Receba V. um abraço
José