(Clique)
O diário Pó, Cinza e Recordações começa a 15 de maio de 1999 e termina a 15 de maio de 2000.
Algum motivo em concreto para ter escolhido este período exacto?
Faço anos nesse dia, e com
o volume anterior, Tempo Contado, tinha
a experiência de que é necessária uma certa dose de disciplina para manter a
pontualidade da escrita diária. Ora além de que a disciplina não é uma das
minhas grandes virtudes, também aprendi que os dias têm então tendência a
acelerar, e quando ainda pouco ou nada tinha escrito sobre o ontem já o
calendário estava no amanhã. Em ocasiões assim o remorso leva a melhor sobre a
paz de espírito, algumas anotações sofrem indirectamente dos ajustes de contas
que tenho comigo próprio.
Escreve a certa altura que olha para este diário "como um desejo de conversa". Com alguém em especial?
De facto não. O
interlocutor ideal, aquele com quem eu gostaria de conversar sem peias, ganharia
sobre mim um perigoso ascendente. De modo que esse "desejo de
conversa" tem uma valia semelhante à do amor platónico, ou de expressões
vazias como "depois falamos disso”. Também não estou muito certo da minha
sinceridade quando manifestei esse desejo, porque às vezes sou dado a diálogos
inconscientes, e então, sendo dois, há ocasiões em que um de nós passa
rasteiras ao outro, ou diz o que no momento lhe vem à cabeça. Conclusão: há pouco
que confiar no que se lê.
Passagem do diário:
"Aonde pertencerei? De verdade e por inteiro, a parte nenhuma. A terra
onde nasci tornou-se-me estranha como um teatro, quando estou nela tenho a
ideia de que represento um papel. A outra, onde vivo há
mais
de meio século, dá-me por vezes a ideia de um navio que se afasta e me
deixou no cais." Divide cada ano entre Trás-os-Montes e
a Holanda. Ainda pretende encontrar um terceiro território para se fixar?
Um poeta será capaz de
afirmar que este meu viver em duas sociedades tão diferentes se pode revelar
fonte de inspiração, de energia, riqueza intelectual, uma espécie de "éducation permanente" (ignoro
se o conceito ainda existe ou passou de moda), um bónus, mas o certo é que me
obriga a um constante alerta, porque o que é bom, correcto e válido em
Portugal, por vezes não o é na Holanda. Vice-versa, o que na Holanda se toma
como assente, obrigatório ou necessário, está longe de sê-lo em Portugal. De
modo que a minha situação tem alguma semelhança com a do artista que trabalha na
corda bamba – hesitei se escreveria funâmbulo, porque a crise nacional não é só
de dinheiro, mas também do uso da língua – e constantemente tenho de me adaptar
ao lugar onde fisicamente me encontro.
Publicou outros diários, como A Flor e a Foice (1974 e 1975) e Tempo Contado (1994 e 1995). Portugal
mudou assim tanto nestas últimas décadas?
Essa deixa-me atordoado.
Acha que sim? A Flor e a Foice um
diário? Julguei que tinha escrito sobre a história, a ditadura, o colonialismo,
o 25 de Abril. As quatro ou cinco anotações de reportagem não justificam esse
qualificativo.
Portugal não mudou muito,
mudou imenso, mas o tamanho da mudança só o sente quem, como eu e os meus
contemporâneos, tem a idade precisa e conheceu o país que H.G. Wells visitou em
1931, escrevendo, assombrado, que encontrara em Portugal uma miséria mais
dramática da que vira na Rússia.
O que sobremodo entristece
é a pitoresca mentalidade de que tantas vezes me dou conta no nosso país, a de que
o progresso parece ser algo que se recebe por favor ou esmola, e não por
esforço individual ou social. E em tudo o que vai mal, continua torto ou não se
consegue, a culpa é sempre dos outros.
Escreveu algum diário
entretanto?
Não escrevi, mas é curioso
que a semana passada, sem que me ocorra o motivo, decidi que a partir do
próximo dia quinze meterei de novo mãos à obra, se bem que nada garanta que não
desanime pelo caminho, ou que o ano venha a fornecer matéria que valha a pena
anotar.
Há poucos meses
foi reeditado o seu primeiro romance, Montedor,
escrito em 1968. Tem tido a carreira literária que
ambicionava?
Acredite ou não, eu nunca
tive, não tenho, nem a poderia ambicionar, pois carreira literária é para mim
um conceito estranho, oposto à ideia que tenho da condição de escritor. Quando
vi o meu primeiro livro publicado, o choque que me causou foi de que me metera
onde ninguém me tinha chamado, que não era ali o meu lugar. E durante muito
tempo tive pelos escritores – eu não me considerava um deles – grande respeito
e admiração. Tinha-os por seres superiores, refinados, gente que funcionava em
alturas e ambientes que me atordoavam. Só desci à terra quando comecei a privar
com eles e dei conta de que eram de carne e osso. E como todos os humanos, as
mais das vezes de má carne e fraco osso.
De modo que carreira
literária não tive nem tenho. Vou escrevendo como o faço desde o princípio, sem
plano nem estratégia, pelo gosto que me dá, ora a ver se consigo um romance, ou
se é hora de me deitar a um conto, uma crónica. Tão simples como isso.
Há romance inédito a caminho?
Há, mas é gravidez de que
não se fala, porque o verdadeiro Dono Disto Tudo, o que está lá em cima,
constantemente de teodolito apontado a espreitar o que fazemos, não gosta que
se fale de promessas, só de obra acabada.
Em Março deste ano, foi exibido na TV um documentário sobre si, da autoria de António-Pedro Vasconcelos e Leandro Ferreira. Sentiu-se
bem no retrato?
Sentir-me bem significaria
sentir-me contente, orgulhoso de ter dito coisas profundas, ter desempenhado
bem um papel. O que acontece é que nunca me sinto bem comigo próprio, ou a
figurar, a ser centro de atenções. Tenho cerca de trinta anos de actuações na
televisão neerlandesa, mas as vezes em que me senti bem foi quando estava por
detrás e não defronte da câmara.
O que está a escrever
neste momento?
Coisas soltas. Esforço-me
por ser pontual no meu blogue: tempocontado.blogspot.pt
Pode partilhar o que anda a ler por estes dias?
Numa espécie de penitência ando com o Dom Quixote, pois para minha grande
vergonha até agora só tinha lido umas quantas passagens, embora não hesitasse
em referir de vez em quando a luta insana de D. Quixote com os moinhos ou a bonomia
de Sancho Pança.
Há dias acabei de ler The Narrow Road to the Deep North, de
Richard Flanagan, que bem merece o Man
Booker Prize que ganhou o ano passado.
Que escritor ainda o consegue surpreender?
Na minha idade as
surpresas tornam-se raras, mas se referisse os dois escritores que de facto me
surpreenderam, me dão esperança de que a literatura portuguesa não está
moribunda, e que ainda há quem ame e use bem a nossa língua, ia de certeza causar
desconforto a este e àquele.
Tem alguma sugestão literária para tradução em
Portugal?
Teria de ter tempo para
pensar, recordar leituras. Assim do pé para a mão não me ocorre nenhuma.
Ainda se lembra com quem aprendeu a escrever?
As primeiras letras
aprendi-as aos quatro anos com o meu avô paterno. Uma frase que ele, que era da
Guarda Fiscal, me fez copiar dezenas de vezes: "Remessa de documentos para
a Sede", até ser capaz de a escrever e soletrar.
O que nota em primeiro lugar quando entra numa livraria?
O pessoal. As vendas e o
interesse pelo livro de certo ganham com a atitude e a competência do pessoal.
O empregado que responde desinteressado ou olha de lado e é pronto no "Não
temos", deve procurar outra profissão.
E em segundo?
O arrumo das prateleiras,
porque nem sempre facilitam a busca.
Por fim, que pergunta devíamos ter feito logo no início?
Se gosto de ser
entrevistado, e se na entrevista me esforço por ser eu próprio ou me torno um
personagem.