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Festejaram-lhe os sessenta e dois com o menu que sempre deseja e na casa é tradição: camarões, bolinhos de bacalhau, presunto de Lamego, queijo da Serra, depois cabrito assado, arroz doce, o A desenhado a canela numa travessa tão desmesurada que os nove que eram à mesa só metade tinham comido.
Todos queriam mais
café e alguns iam já no whisky, quando de súbito a conversa azedou entre a nora
e o filho, a mulher do Guedes de pé entre ambos a pedir que acalmassem, explicando
que quando era nova também lhe davam repentes, às vezes nem sabia porque se
zangava.
- Sangue na
guelra!
Levantou os olhos,
perguntando-se quem teria falado, surpreso do silêncio que de repente caíra ali,
como se temessem uma inconveniência ou esperassem um azar.
Depois a conversa
retomara, ele sentindo-se ausente, compreendendo mal do que falavam,
estranhando a modorra que o prendia à mesa, agora que os outros já se tinham
levantado e iam para o jardim.
Não foi relâmpago
nem ouviu vozes, mas naquele instante compreendeu o vazio da sua existência, a
razão das ânsias que o torturavam, a banalidade dos sentimentos, a pouca
valia das suas atitudes. E sem saber como ou porquê sentiu-se entranhado de
inesperada calma, uma aceitação.
Não fazia ideia de quanto tempo ainda teria,
mas teve a certeza de que começara a morrer.
Juntou-se aos
outros e a nora fê-lo sentar, encheu-lhe o cálice, beijou-o na face.
- Está uma bela
tarde.
Ela já se tinha afastado e não ouviu.