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Para que o Porto avive em mim a magia com que me enfeitiçou ao nascer, basta a lembrança de umas quantas ruas e do seu rio. Curiosamente, com as ilusões e os sonhos que se têm na infância e ficam para o resto da vida, o nome de Douro uso-o eu não somente para um, mas para três rios distintos.
O primeiro conheci-o nas lições de Geografia:
nasce na Sierra de Urbión, atravessa a Espanha, onde lhe chamam Duero,
atravessa Portugal e desaparece no Atlântico. Abstracto, impessoal, não vive,
não corre, é simples linha azul nos mapas.
O segundo Douro é o que se avistava
do comboio que nas férias me levava do Porto para a nossa aldeia transmontana.
Ao contrário dagora, com as barragens que o acalmaram e puseram quase ao nível
dos carris, o rio desse tempo remoinhava furioso por entre cachões. A sua água
espumava e, vistos do comboio, os rabelos carregados de pipas de vinho,
que atracados aos cais da cidade me impressionavam pelo tamanho, pareciam naves
de brinquedo a lutar contra a corrente no fundo das ravinas.
Esse era o rio majestoso, de que se
contavam lendas e onde ocorriam tragédias. As suas margens eram uma
espectacular paisagem de rochedos, colossais muralhas de xisto, arbustos
ressequidos, aldeias nas encostas, vinhedos que se estendiam a perder de vista.
Aqui e além uma vela branca, barcos varados nos areais. Gente que parava de
trabalhar e acenava alegremente ao comboio. Pássaros em voo lento, desenhado a
preto no azul do céu.
No tempo das cheias os rabelos
perdiam por vezes o governo e iam despedaçar-se contra os penedos. Depois,
inchados e roxos, os cadáveres dos náufragos apareciam defronte do Porto, na
Ribeira, parados pela força da maré cheia, ou apertados entre as embarcações.
De todos os três o terceiro Douro é o
que me é mais querido. E tão familiar que, com a mesma ingenuidade com que nos
apossamos das paisagens da nossa infância, muitas vezes julguei que fosse só meu.
O meu Douro tem pouco a ver com a
linha azul que nos mapas atravessa a Espanha e Portugal, e do segundo Douro
somente partilha as águas. No que respeita o comprimento, a esse mal se lhe pode
chamar rio: começa junto da ponte do caminho de ferro que Eiffel construiu em
1876, passa sob a ponte de D. Luís I, faz duas curvas preguiçosas, alarga-se um
momento e, como que exausto pelos cinco quilómetros que percorreu, entra no
mar.
Os anos de menino passaram, a magia
ficou. Nesse meu rio só eu os vejo, mas os veleiros de quatro mastros,
embandeirados e pintados de branco, estão de novo atracados ao Muro dos
Bacalhoeiros, à espera que o bispo os venha abençoar para que o mar da
Groenlândia seja calmo e lhes dê boa pesca. Vejo-os quando regressam, sujos,
ferrugentos, o velame esgarçado, tão carregados que mal se lhes distingue a linha
de água.
Guardo os postais dos anos 30, que
mostram o rio atulhado de cargueiros, o fumo branco a escapar-se-lhes das
chaminés e dos guindastes, que nesse tempo ainda eram a vapor. Noutros estão as
filas de carrejões que faziam a descarga do sal e do carvão. Vão de cesto à
cabeça a correr pela prancha que junta o navio ao cais. Vejo a prancha
balançar. Oiço os risos e os gritos. Vejo os botes que pescam a meio do rio e
os outros que cobram dez tostões pela passagem.
Mas não atravesso ainda, deixo-me ficar
em Gaia, no largo onde nasci. Em 1849 vivia aqui Frederick
William Flower. Escocês, comerciante de vinhos, fotógrafo pioneiro. Tal como
depois a mim, a ele também o panorama deve ter parecido mágico. Provam-no as
suas fotografias.
Ajudado por elas viajo no tempo.
Passo pelos estaleiros, que depois fariam o encanto da minha infância, e
atravesso o rio sobre a ponte pênsil. Desta só restam na margem direita duas
das quatro colunas em que a ponte se apoiava. Continuo pela Ribeira, passo pelo
baixo-relevo que recorda o desastre da ponte das barcas, em 1809, em que
desapareceram no rio milhares de portuenses que fugiam das tropas de Napoleão.
Ali ao lado faço uma reverência à
placa do "Duque". Quem não sabe, estranhará, e é preciso explicar. Como toda a
gente, também eu conheci o "Duque", que morreu quase centenário em 1997. Lá está lá a placa para recordação. Diocleciano Monteiro. Cauteleiro, barqueiro,
por alcunha o Duque, devido à nobreza do seu porte. A fama veio-lhe aos onze
anos, quando se atirou ao rio para salvar um infeliz que se afogava. E como se
o destino o tivesse marcado, ficou salvador de vidas e “pescador” de afogados e
suicídas para o resto da vida. Centenas deles, dizem. “Houve um ano em que se
atiraram doze da ponte abaixo.”
Logo detrás da Ribeira, e subindo
pela encosta até à Sé, fica o emaranhado de ruas e vielas que em tempos
imemoriais foram as primeiras da cidade. Sombrias, estreitas, misteriosas. Com
uma vida pública que sofre a luz do dia, e outra secreta, nocturna, de vultos
fugidíos. Aí ficavam o Royal e o Guarany, os cafés onde me tornei homem,
com o primeiro cigarro, a primeira cerveja, o primeiro susto, que nesse tempo
se exorcizava com orações e permanganato.
Pela Rua dos Pelames desce-se para o
centro e para a estação, que primeiro foi convento. Para mim lugar magnético.
Encarcerado atrás de grades invisíveis, tantas vezes lá sonhei viagens que,
finalmente, numa noite má de Inverno, o destino compadecido abriu a prisão e
deixou que eu tomasse o comboio que dali me levaria para Paris e para o mundo.
Entro lá agora com o sentimento de
quem penetra numa igreja. Os painéis de azulejo que revestem as paredes até ao
tecto devolvem-me aos anos de menino. Vejo-me a caminhar para o comboio atrás
de meus pais. O bagageiro empurra as nossas malas para dentro do compartimento.
A máquina apita.
Volto a mim e desço para a Rua das
Flores. Durante três séculos foi a grande rua da cidade. Moravam nela os ricos,
era ponto de passagem obrigatório para as procissões. Desfilavam nela também os
condenados que iam para as forcas à beira-rio. Mas por volta dos anos 50
começou a definhar. Das ourivesarias, de que recordo mais de vinte, resta uma
na primeira travessa.
Meto para o Largo dos Lóios e em vão
procuro as livrarias que fizeram o encanto dos meus tempos de estudante.
Desapareceram todas. Em vez delas estão lá agora sapatarias e lojas de
electrodomésticos, lojas de artigos em segunda mão. Nalgumas portas,
comerciantes indianos tristonhos, as suas bocas marcadas por aquele ríctus que
involuntariamente leva a pensar em Naipaul.
Rua dos Caldeireiros. Um dia que lhe
propus irmos jantar à Adega de Vila Meã, no nr. 62, um amigo encarou-me
incrédulo e horrorizado. Provavelmente porque vivia longe, eu não me dava conta
de como na cidade tudo tinha mudado. Gente de juízo nem mesmo de dia se
arriscava a passar por aqueles lados. Querer ir lá de noite? Fora de questão. E
contando pelos dedos: ele eram os drogados, os carteiristas, a juventude
desencaminhada, os chulos, os bêbedos, os mendigos…
Fomos comer a outro lado, mas não lhe
posso dar razão. A Rua dos Caldeireiros, como as todas as que sobem para a
Torre dos Clérigos e a universidade, são íngremes, estreitas e modestas. A uns
parecerão perigosas. Outros, como eu, acham romântica aquela escassez de luz,
que de dia as transforma em vielas de souk e de noite - os lampiões são
poucos, fracos e espaçados - as devolve ao tempo antigo.
Para mim é obrigatório: acabada de
subir a Rua dos Caldeireiros dou a volta à torre que Nicola Nasoni construiu
entre 1732 e 1763 e onde, orgulhoso da sua obra-prima, pediu que o enterrassem.
Caminho depois em volta do edifício
quadrangular e severo da universidade. Regresso pela Rua das Carmelitas. Paro
junto da escadaria da igreja e sorrio à lembrança do que me faz deter ali, a do
dia em que escapei à morte.
A rua desce com uma inclinação
invulgar e, talvez por ser perigosa, deixaram de passar nela os eléctricos que
nos traziam do liceu. Nesse tempo tínhamos quatorze, quinze anos e, para
desespero do revisor, mal o eléctrico na descida ganhava velocidade saltávamos
dele para o passeio como em voo. Era arriscado, dava cachet, as
raparigas gostavam de ver e batiam palmas.
Dessa vez era eu o último e o
revisor, irritado, tinha-me de olho, não se deixava iludir com a indiferença do
meu modo. Ao ver-me pronto a saltar agarrou-me com força pelo braço, eu puxei
com força maior, desprendi-me, escapei-lhe. Mas em vez do elegante voo que
tinha preparado rodopiei pelo ar. Vi a rua e as pessoas de cabeça para baixo,
ouvi gritos, o chiar dos travões dos carros, e aterrando sobre a barriga
deslizei do passeio para dentro da farmácia Vitália – hoje ainda no mesmo
lugar, no número trinta e quatro da Praça da Liberdade. Grande sorte a minha,
porque era dia de grande calor e as
portas estavam abertas de par em par, caso contrário teria esfacelado os miolos
contra elas e não estaria agora a recordar o caso.
Atravesso o centro e vou de remanso
até à Alameda das Fontainhas. Por toda a parte cartazes a anunciar
festividades. Mas o Porto cosmopolita, metrópole do futuro, ajusta-se mal ao
meu Porto que, mais do que realidades, é feito de memórias e sonhos, de
miragens, de ilusões que o tempo não mata.
Debruçado no muro da alameda enfrento
o meu Douro e as duas pontes de ferro. Ignoro as outras, elegantes, feitas de
betão. Reponho no lugar donde
desapareceram, as escadas que nos Guindais iam da rua para o rio e serviam de atraque
aos rabelos. Em vez de pipas de vinho, no mês de Junho vinham carregados
de borregos, que eram mortos mesmo ali e se comiam na véspera de São João.
E de súbito faz-se escuro, há um mar
de gente à minha volta, foguetes rebentam em milhares de estrelas coloridas. A
aragem morna traz fragmentos das marchas que as bandas de música tocam pelas
ruas. Há gente a dançar. Para o céu sobem grandes balões de papel de seda, com mechas
que os enchem de ar quente e lhes avivam o colorido.
Se a vida não obrigasse, nunca eu
quereria acordar dos sonhos que a magia do Porto aviva em mim.
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(*) Publicado originalmente em versão
neerlandesa, no magazine do jornal Algemeen
Dagblad - Rotterdam, 05.03.2001.