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É mais que gosto ou apreço, é amor de
verdade e misterioso sentimento, o que me dá a nossa língua. Demoro em certas
palavras a saboreá-las, encanta-me a melodia, o significado, pergunto-me que
feitiço se esconde nelas, capazes como são de tanto exprimir, outras vezes
negando o entendimento ou, travessas como crianças, fugindo quando as chamo,
aparecendo no lugar errado.
E que grande tesouro é! Quantas maravilhas
esconde! Que pena dá que dela saibamos tão pouco, mais pena ainda de ver como
alguns a desleixam e desprezam, achando fino deitar mão a estrangeirismos,
inventando modismos que são outros tantos sinais de debilidade mental.
Porque a alguns falta o ritmo, a outros o
ouvido, mostram por vezes os literatos alguma falta de jeito na dança com as
palavras. E enriquecer-lhes o significado é dado a poucos. Nesse particular
surpreende como são por vezes os simples mais capazes de seguir o filão e
encontrar nele o diamante.
Contava-me um médico que, muitos anos
atrás, tendo começado a trabalhar para as bandas de Monção, lhe aparecera um
dia um paciente que, a modos de queixa, disse:
- Vou pró campo e é só vento!
Depois de alguma conversa descobriu o jovem
clínico que o lavrador, para quem a leira era a única retrete, ao querer
aliviar as entranhas só lhe saíam peidos.
O meu exemplo é de anteontem. Adoeceu o
vizinho, mas o bichanar das mulheres não adianta para saber se é grave e
necessária a ajuda. À volta doutros afazeres descubro que aquele que o levou à
urgência não diz mais que "Ficou lá. Puseram-no a soro".
Retorno às mulheres. Pergunto, mas de nada
adianta, com ar de inquisidor agarro pelo braço a que me parece mais assustada,
ela cede:
- Há três dias que não fecha!
- Não fecha?
- Há três dias que não fecha!
Demorou, mas à força de circunlóquios e apontando
vagamente lugares da anatomia, lá conseguiu explicar que o vizinho há três dias
andava com tal soltura que não saía da retrete.
Maravilhoso instrumento, a língua
portuguesa.