terça-feira, setembro 28

Pontos no "i " e vingança do Além

Enviado por mão amiga, o texto que segue, da autoria de Bruno Vieira Amaral, foi publicado no jornal “i” semanas atrás. Antes, porém,  que você ao lê-lo se sinta tentado/a a chamar-me nomes feios e a assacar-me qualidades que creio não ter, paciente com o seu juízo até ter lido também o meu parecer. Pense depois o que quiser. É o seu direito, serei eu o último a levar-lho a mal.



“Num meio pequeno é assim que se sobrevive. As raivas, as invejas e os ódios vêm esporadicamente à tona, por vezes explodem, mas logo depois tudo assenta e o dia-a-dia continua a arrastar-se, sempre igual, imutável na sua fingida serenidade.” p. 107

A Amante Holandesa começa num registo evocativo da infância numa aldeia de Trás-os-Montes. Rentes de Carvalho (n. 1930) banha o relato de nostalgia: os sonhos de um rapaz pobre, os montes desertos, o comboio da linha do Sabor. Gradualmente, a história vai ganhando contornos mais negros. As recordações de Amadeu, ex-emigrante na Holanda e regressado à aldeia com a mágoa de ter deixado para trás mulher e filha, adensam o sentimento de frustração do narrador, amigo de infância de Amadeu e professor de História em Bragança. O rememorar de uma paixão avassaladora nas palavras de um homem simples e analfabeto perturba o professor, magoado com a vida, desiludido com o casamento e mortificado por segredos fundos e perigosos. Aquela história alheia, quase romanesca, acirra o demónio dos seus próprios falhanços, da monotonia da sua existência.

Um primeiro clímax encerra a metade inicial do romance, mas o mote para o que se segue já está lançado. Rentes de Carvalho pega nas pontas soltas e estica as cordas até um máximo de tensão. Então tudo se precipita e os pequenos incêndios na vida do professor alastram num grande e incontrolável fogo: o casamento, a relação com as gentes da aldeia e as consequências dos pecados ocultos. No meio da devastação, é a chegada da filha de Amadeu, fantasma e aparição, que oferece ao professor uma última esperança.

Uma personagem como a do professor, que nos faz balançar entre a repulsa e a empatia, é uma enorme criação literária. Apesar de ser vítima dos comportamentos gregários e ferozes dos habitantes da aldeia, compreende-os e perdoa-os porque também ele anseia pelo perdão que lhe é negado. Com uma linguagem dura e terna, simples e carregada de sentido, Rentes de Carvalho recria na perfeição a vida num meio pequeno e disseca as entranhas de um povo – a obsessão com as vidas dos outros, a crueldade que explode em violentas erupções para logo se camuflar nos hábitos rotineiros, os ódios alimentados na sombra, os desgostos inomináveis.

Aos 80 anos, com uma obra que faz lembrar um Vergílio Ferreira depurado de derivas filosóficas, Rentes de Carvalho afirma-se como mestre tardio e absoluto da nossa literatura.

Semelhantes palavras são, deveriam ser, néctar para a alma de um escriba. Agradaram-me? Pois agradaram, ou melhor: deveriam ter agradado, não fosse o senão de que, dezenas de anos passados, quando que pela primeira vez o li, logo Vergílio Ferreira se tornou uma das minhas bêtes noires.
Desde a má prosa à pedantice, desde a vaidade, ao orgulho e às pretensões de eminência, tudo no homem me desagradava e irritava. Lia-o por obrigação de ofício, mas ao longo de quase três décadas, os meus estudantes de então de certeza recordam a desmesurada fúria que me causava o sujeito e a sua empolada e nevoenta prosa.
Assim, ver-me agora comparado com ele não deve ser obra do acaso. Desconfio haver aqui intervenção do Além, sou levado a pensar que o jovem Bruno Vieira Amaral, julgando escrever pela sua mão, “ouviu vozes” e serviu de inconsciente médio a uma manhosa vingança do autor de Manhã Submersa.
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PS. No homem até aquele V(e)rgílio me irritava.