sexta-feira, abril 16

Pernas (2)

Faltou pela primeira vez uma terça-feira, mas o desapontamento neles notou-se apenas em pequenos gestos de irritação, num ou noutro remoque, nos "até logo" indiferentes quando se separaram.

Viram-na na quarta e no dia seguinte. Quando de novo desapareceu ainda demorou até que, com rodeios e palavras vagas, alguns se decidiram a perguntar no banco. Sim, era funcionária muito competente, tinha sido transferida, mais não podiam dizer.

Pasmo quando tempos depois a viram atravessar a praça, de braço dado com um desconhecido, mas só o Aníbal não conseguiu conter-se: - É a gaja, não é?

Os outros olharam como se não tivessem visto, encolheram os ombros e continuaram o dominó, desinteressados quando ele saiu.


Descobriu-os quando já iam perto dos Bombeiros, seguiu-os até ao Campo da Feira, passaram o cemitério, ele uma sombra desatinada, a resfolegar, atónito quando se viu defronte do desconhecido que lhe barrava o caminho:

- Quer alguma coisa?

Não, não queria nada, mas já o outro o pegara pelos ombros e sacudia como se quisesse...


Estas coisas acontecem e desculpas não faltam. A verdade é que de vez em quando se começa uma história com a ideia de determinado enredo e de súbito tudo emperra: os personagens recusam tornar-se "vivos", o movimento perde o ritmo, as cenas surgem banais em demasia.

Em ocasiões dessas Raymond Chandler recomendava que, para sair do impasse, um dos personagens cometesse um assassinato ou descobrisse um cadáver.

Na história acima tentei o assassinato, mas não resultou. Por mais voltas que lhe desse o desconhecido continuava a agarrar o Aníbal pelos ombros e a sacudi-lo.

De modo que resolvi parar e a deixo aqui como testemunho, mais um, dos falhanços sem conta que são o pão nosso de cada dia de quem escreve.