A ver se conto direito e dou a impressão justa, se sou capaz de recriar alguma coisa de ambos os momentos e das emoções que me causaram. Tarefa difícil, pois ocorreram a quarenta e cinco anos de distância, em espaços totalmente diferentes – se é que a um telefonema se pode, como aqui faço, chamar também espaço.
Lisboa, 1964. O jornalista que nesse momento sou, janta e festeja uma noite de fados com os pilotos e as hospedeiras do avião em que viajara.Terminada a festa, trocados os beijos e abraços, vai cada um para seu lado.
Puro acaso, dias mais tarde, encontro uma das raparigas em Amsterdam.
- Café?
- Café.
Sentados, ela entusiasmada a contar das suas viagens, senti-me de súbito como que embruxado. Não pela beleza, que de facto tinha, mas pela voz. Som, timbre, dicção, modulação... aquilo não era voz corrente, sim um instrumento de refinada melodia e suavidades de harpa.
Nada lembro da conversa, recordo apenas o milagre a que assisti e a certeza que me ficou de haver vozes que, ao exprimi-las, dizem muito mais que as simples palavras.
O segundo caso ocorreu ontem. Telefonei a uma jovem mulher de quem apenas conheço um retrato e o invulgar, muito poético estilo da sua talentosa escrita.
Ao ouvi-la senti-me transportado para quarenta e cinco anos atrás. De novo uma dessas vozes milagrosas. Som, timbre, melodia, dicção, modulação... até mesmo os compassos de pausa, as mudanças de volume... Belo dom, semelhante voz.
Feliz sim, a repetição da maravilha.