Na rectaguarda tem um papel onde o meu avô paterno escreveu tê-lo comprado no dia 12 de Março de 1889. Em vida só ele lhe dava corda, ritual que, pelo que ouvi contar, se efectuava aos domingos depois da ceia. Meu pai herdou a função e manteve a cerimónia, informando por vezes que a pontualidade prolongava a vida do instrumento. De longe a longe deitava-lhe umas pingas de óleo “para que andasse melhor”.
Com o falecimento de meu pai, e quando vinha à aldeia, passei eu a accionar a chave. Mas por estar muitos meses parado, pela idade, ou falta de lubrificante, o movimento do relógio tornou-se errático. Ora parava para inesperadamente continuar, umas vezes tocava as horas ou então silenciava...
Irá para meia dúzia de anos levei-o a Mogadouro, ao senhor Jorge, e ele, relojoeiro competente, pô-lo a funcionar, acrescentado que tinha feito o que pudera, mas o “bicho” já tinha muitos anos.
Desde então tem menos corda e atrasa-se seis, sete minutos cada vinte e quatro horas. Dá-se o caso de que, entre as coisas boas e más que herdei dos que me geraram, coube-me a obsessão da pontualidade. E assim, toca o relógio da igreja as nove, olho para a parede, vai ele atrasado dois minutos. Deixo o que estou a fazer e vou corrigir. Ouve-se na torre o Avé do meio-dia? Olho. Quase dois minutos! Corrijo.
Assim se me vai o tempo e a serenidade, estou a tratar o aparelho mais que centenário com impaciência igual à que os novos tratam os idosos, que se atrasam, funcionam mal e já não são o que eram.