domingo, abril 27

Perguntas e respostas

 

Por cortesia, mas também curiosidade, fiz eu ao amigo que há tempos não via, as perguntas clássicas sobre a saúde, a família, as andanças, a disposição.

Respondeu ele a tudo pela positiva, acenei o meu agrado, foi então que me veio à memória a simpática e brilhante filha única que tem, e a curiosidade de perguntar se era oportuno saber se já havia namoro e, caso assim fosse, que opinião tinha ele do futuro genro.

 

A resposta veio sorridente, franca, moderna no conteúdo, mas se posso dizer que não me deixou de boca aberta e pernas para o ar – no Google procurei o significado de poliamor - tive alguma dificuldade em esconder a surpresa da revelação. É que embora me queira mostrar modernaço, não consigo abstrair da consequência das décadas que já vivi, influenciado por ideias e princípios tão distantes, que se os comparo já nem exóticos parecem, antes medievais.

Porém, como este é o mundo em que me encontro, e à vida social ninguém escapa, o remédio é aceitar. Foi nessa pacífica disposição que, algum tempo depois, recebi o pedido de Catarina.

Simpática, a meio dos trinta, vida desafogada, embora com sobra de relações e amizades não conseguia encontrar forma para o seu pé. Só que quando a encontrou – foi mesmo paixão – o cavalheiro a tinha surpreendido com uma exigência: por nada deste mundo deixaria a mulher e os pequenitos. De modo que era aceitar a três ou largar.

Catarina aceitou, e como a esposa do cujo “virava dos dois lados” – assim se dizia em tempos idos – tinham passado uns quantos meses de paixão. Por má sorte, tudo findaria na tarde em que o Jorge, cinco anos mas esperto quebra-louças, puxando-a para si e falando ao ouvido, lhe revelara um segredo. Tão assustador esse, que no mesmo instante tinha deitado a fugir.

 

PS. Passados uns oito anos escrever semanalmente estes textos para o Correio da Manhã, chegou a hora de parar. Grato aos que os leram no CM e aqui.  

No que respeita este blog, velhinho de dezoito anos, pode ser que de um dia para o outro feche por razões várias, entre elas o sentimento de que o autor escreve com um vocabulário e num estilo há muito ultrapassados pela modernidade dos que dispensam artigos definidos e tudo conseguem "alavancar". Que o Senhor os ajude, e a nós também.

 

 

sexta-feira, abril 25

Estranho sentimento

Estranho sentimento, o de súbito perder a quase centenária vontade de escrever, como se o comunicar com estranhos que faço aqui há quase duas décadas, me pareça agora tolice, uma intromissão na vida alheia, quase a modos da bacoquice que, dizem, vai de par com a demasia de anos vividos e perdidos.

domingo, abril 13

Travessuras da memória

 

Facto é que para minha surpresa, e por vezes a dos que me conhecem, a memória ainda não dá excessivas razões de queixa ou alarme. Isso mesmo quando lhe peço que me recorde o nome de uma estrela do cinema alemão dos anos quarenta, o título de um filme italiano clássico ou, em desafio, me traga à lembrança o nome e as qualidades do personagem principal de Cem anos de solidão, o romance de Gabriel Garcia Marquez.

De uma maneira ou doutra, questão de sorte na lotaria da genética, puro acaso, ou talvez resultado de que, nos alimentos minha longínqua infância e juventude, o superfosfato da CUF era a única mixórdia química que adubava os campos.  Nesse antigamente, o trigo, o centeio, a aveia, o milho, as batatas, fruta, hortaliça, tudo se semeava e crescia em campos que, saudável e naturalmente, eram  adubados com o fermento do esterco animal e humano.

Não se vá pensar, todavia, que estou alegremente a bater no peito, inchado de segurança, pois não me faltam momentos de susto, ou até verdadeiro pânico como – felizmente espaçados – ver-me de súbito a apertar a mão de um conhecido, sentir-me incapaz de recordar o seu nome e, na vã tentativa de ocultar o doloroso embaraço, embrulhar-me num diálogo sem pés nem cabeça, a fazer observações que lhe parecerão disparatadas, mas são apenas a cortina de fumo a esconder o torvelinho que nesse instante me assalta o cérebro.

Assim, pois, se tenho algum motivo para me felicitar pelo razoável funcionamento da caixa cerebral que armazena os dados, não perco de vista a realidade de que, de um momento para o seguinte, basta um diminuto nada, um átomo destrambelhado que mude de lugar, e então segurança, satisfação, certezas,  calma, horas de paz, vai tudo água abaixo.

 

quinta-feira, abril 10

Que liberdade ?

 

 https://maepreocupada.blogspot.com/

domingo, abril 6

Forca sem corda

 

Nem todos os casos se podem contar, pois mesmo quando os embrulhamos em ficção, e se situam os personagens e as peripécias em lugar distante, há muitas vezes um passo em falso na narrativa, ou detalhe traiçoeiro que escapa, pondo então fim ao enredo e ao intuito de esconder.

O sofrimento destes merecia um Camilo, mas homem, mulher ou transgénero com o talento desse gigante literário está para nascer, pois os escribas que por aí andam nem aos calcanhares lhe chegam. Além de que muitos desses pouco sabem da arte da escrita, e dos enredos da boa ficção ainda menos, vêem na gramática uma desnecessária geringonça, que para mais não serve do que impedir o livre curso do historial dos seus enredos e emoções.

Sobre os personagens antes citados vamo-nos então contentar com um mínimo de referências, e essas serão de que nasceram filhos únicos em família remediada, numa vila de província que, nalguns aspectos, é de facto um presídio social.

Começou a tragédia pelo pai, que uma noite ao jantar se tinha de repente levantado, acenando o que parecia uma desculpa. Porque estranharam que demorava foi ele à procura, e o grito que deu ao vê-lo enforcado ecoou na rua, acudiram os vizinhos. Iria repetir-se a tragédia coisa de ano e meio depois, o avô pendurado na mesma trave.

O casamento deles, já no tarde, tinha sido comunhão apalavrada das posses e alguma simpatia, que amor de verdade é o das telenovelas. Felizmente nasceu-lhes um anjo, e quase dezassete anos conheceram o Paraíso, julgaram que seria para sempre, viriam netos.

Só que em vez de netos veio a droga, veio o martírio, sobram as ameaças. Não lhe neguem o dinheiro, que ela adivinha como o escondem. E sabe onde está a corda.