Bom seria que existisse e houvesse à venda, um ferrolho para a memória. Tenho a absoluta certeza de que não discutiria o preço. É que para meu mal, além de que ainda não foi inventada semelhante geringonça, cabe-me a má sorte de, ao contrário do que dizem ser o que normalmente acontece na muita idade, a minha memória parece ter um refinado gozo em me mortificar, trazendo ao de cima a recordação de momentos desastrosos, passos em falso, misturando episódios da meninice com horas da vida adulta, enredos que ainda me fazem corar de vergonha. Sobretudo aqueles que, para poder esquecê-los, e fosse isso questão de dinheiro, de bom grado pagaria sem olhar ao preço, ou tivesse de me rebaixar para conseguir a cunha que me libertasse.
Para mal de todos, e de mim em particular, a memória desconhece transacções. Não é carrasco a quem se pague para finjir a tortura, nem funcionário corrupto que, a mão bem untada, sorri, pisca o olho e esquece a multa.
Prova não há, é suposição minha, mas dada a sobrenatural qualidade de como nela se misturam, confundem, agitam, trespassam e enrolam os infindos momentos de cada vida, tem a memória toda a aparência de ser instrumento de Satanás, já que – à cautela dou-lhe maiúscula – a Ele se atribui a origem de quase tudo o que nos aflige e prejudica.
Convencido de que, tal como a muitos, a passagem dos anos faria diminuir a sobrecarga de recordações, vejo-me a braços com uma situação que outros talvez festejassem, mas a mim preocupa, tira o sono, põe azedo, dá ideia de praga rogada.
Infelizmente, a certeza que tenho da existência do Demónio não é compensada por uma crença em exorcismos, de modo que me encontro num beco sem saída ou, melhor dizendo: entre a espada e a parede, à espera do golpe de misericórdia.