Por volta de 1935, ao entrar na escola, o salazarismo esperava
por mim com uma visão imperial do tamanho do país.
Sobrepondo a área das colónias ao mapa da Europa, Portugal era uma mancha que
se estendia do Atlântico até para lá de Moscovo. E quando a professora
afirmava, com indiscutível autoridade, «O nosso país tem tudo» ou «Salazar é a
Grande Luz», eu e os outros, tenros de idade, facilmente impressionáveis,
sentíamos uma satisfação igual à que sentem os ricos e os protegidos.
Por sobre essa grandeza do tamanho havia a da História.
Portugal nascera do conselho que Deus, em boa disposição, dera num dia de 1139
a Afonso Henriques, o primeiro rei. E desde então, cada vez que, por descuido
ou boa-fé, o país se encontrava à beira do desastre, a intervenção divina nunca
se tinha feito esperar, o Senhor aparecendo pessoalmente aos reis ou, como em
1917, delegando Nossa Senhora de Fátima para proteger Portugal, e através dele
o Mundo, contra o dragão comunista.
Logo a seguir às de Deus, a História narrava as façanhas dos heróis. Da maior
parte esqueci o nome, mas ficaram que sobram: o que se deixou esmagar pelas
portas dum castelo para que os companheiros, aproveitando a abertura assim
feita, o pudessem tomar aos mouros. Outro, a quem numa batalha o inimigo tinha
decepado os braços, segurara a bandeira com os dentes, dando a que os
camaradas, acudindo, pusessem a salvo o símbolo sagrado. Um terceiro, a quem os
espanhóis incitavam a que traísse, optara pela alternativa de ser frito em
azeite.
Alguns feitos eram mencionados como dignos de pasmo, outros dados em exemplo.
Um infante, feito prisioneiro pelos sarracenos, tinha morrido em cheiro de
santidade. Uma rainha Isabel, a quem o marido acidamente censurara o tamanho
das esmolas, adquirira do Alto o poder de transformar os pães em rosas,
escapando assim à cólera do soberano, quando este a apanhava em flagrante
delito de prodigalidade. Outro rei, Pedro, o Cru, mandara vingar o assassinato
da amante, «a que depois de morta foi rainha», ordenando que o coração dos assassinos
lhes fosse arrancado pelas costas e depois assado. Alguns desvairados cronistas
relatam que o monarca, assistindo à aplicação da sentença, mandou trazer sal e
azeite, na firme intenção de levar a antropofagia por diante.
Deus deitara pessoalmente a mão aos lemes das naus de Vasco da Gama, para que
este não se enganasse na rota para a Índia, e assim levasse até esses longes a
fé de Cristo e a fama dos portugueses. Brincalhão também, o Altíssimo deixara
que Pedro Álvares Cabral se perdesse e, enquanto o dito procurava a rota do
Oriente, fez-lhe aparecer o Brasil diante das caravelas.
Mais tarde, professores doutro quilate guiaram-me numa visão menos mitológica
da História nacional. Mesmo assim, porém, limitados pelo que lhes ditava o
programa oficial ou pelo
controle estrito do reitor, nunca ultrapassavam as barreiras. Se diminuíam a
influência do Espírito Santo, também não aumentavam a dos homens sobre os
acontecimentos; desse modo,
batalhas, transformações, perdas, eram deitadas à conta dos espanhóis, nossos
inimigos de sempre.
Curiosamente, tanto os professores como os compêndios despachavam em poucas
falas e poucas linhas o período que ia da proclamação da República (1910) ao
princípio da ditadura de Salazar (1932). Daí em diante era o panegírico: Ele
salvara-nos do caos económico, Ele livrara-nos da guerra, Ele mortificava-se
para que vivêssemos todos em paz e felicidade.
Estávamos então em princípios de 1945, a Segunda Guerra Mundial quase a acabar. Precocemente politizados, ríamos à socapa dos uniformes da Mocidade Portuguesa, que ainda tínhamos de vestir ao sábado, mas em vez da saudação fascista deixávamos descair o braço e fechávamos o punho.
Os professores, alarmados com o micróbio comunista,
viravam as costas e «não viam» o que no dia 8 de Maio desse ano nos encorajou a
tomar parte no enorme cortejo com que o povo do Porto festejava, tanto o fim da
Guerra, como a esperança de que as forças democráticas europeias não tardariam
a libertar-nos de Salazar.
Esperança perdida. Salazar governou pessoalmente até 1968 e por procuração até
25 de Abril de 1974, com a cumplicidade, o apoio e a bênção de tantos
democratas e tantas democracias, que chega a ser obra de caridade não mexer nas
águas lamacentas desse passado recente.
Certo é que em muitos dentre nós, então adolescentes, o abalo ressentido pelo
abandono em que nos deixavam os países democráticos viria a traduzir-se em
radicalismo político. Desse modo não surpreende que muitos dos homens
empenhados no
movimento de 25 de Abril pertençam à minha geração e se situem politicamente à
extrema-esquerda.
Voltando à escola e aos compêndios: os meses que se seguiram ao fim da Guerra
foram, primeiro, de entusiasmo, logo depois de medo e pasmo. A filiação à
Mocidade Portuguesa deixara de ser obrigatória, mas no resto a camisa-de-forças
apertava à mesma, e de forma ainda mais incoerente, como convinha para
alimentar um ambiente de terror e insegurança.
Um professor, a quem um estágio no estrangeiro tinha transtornado as ideias,
tomara o hábito de jogar futebol connosco durante os intervalos e, nas aulas,
reservava um quarto de hora para que cada um expusesse os seus pontos de vista sobre a língua francesa.
Tão graves quebras da hierarquia pediam castigo exemplar e o homem foi
demitido. Mas para que a memória se nos não apagasse — e não apagou — o reitor
comunicou-nos a pena diante do acusado, levantando o dedo para assegurar que não admitia atentados à
disciplina.
Íamos estudando e vivendo numa atmosfera irreal, decorando
virtudes e feitos heróicos que há muito tinham deixado de nos interessar ou
convencer. A História de Portugal não podia
ser aquilo, nem ser assim. De facto não é. Mas para o descobrirmos foi preciso
que outro professor, pedindo segredo, aconselhasse alguns de nós a lermos
Oliveira Martins.
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Portugal, a Flor e a Foice – Quetzal, 2014