Estou longe de ver o fim da trabalheira em que me meti: há meses a encaixotar livros e papelada que fui guardando há uns setenta anos, e se irão aninhar na Confraria Queirosiana em Gaia, a terra onde nasci.
Encontro de tudo: artigos, reportagens, textos soltos, rascunhos, telegramas (que eram entregues em mão!), faxes, retratos de gente que esqueci, fotografias de um avião anfíbio em que voei, festas do São João no Porto, a catedral de Chartres...
Não me têm faltado surpresas, mas abalo só sofri ao dar com uma carta daquele que foi o meu melhor amigo, guardada no envelope, assim a modos de realçar a lembrança do choque que me causou.
Nela recordava o meu amigo longas conversas que tínhamos tido no começo dos anos setenta sobre a situação em Portugal, e a discordância que nos opunha. Defendia ele o carácter e entusiasmo dos nessa altura chamados “Grandes Figuras” da Oposição, apontava-lhe eu a ganância de que os ditos davam prova, a falta de carácter, as invejas, a sem-vergonha, os golpes baixos, as traições.
Uma tarde em que a diferença do nosso sentir tinha alcançado a fase dos berros, ameaçou ele que, caso eu tornasse público o que pensava dos personagens em questão, deixaria de me falar.
Além da sua amizade ter para mim uma valia indiscutível, era ele também o mentor que, ao longo de anos, me guiara em questões de Literatura, Arte, Cinema e História.
Fora isso também lhe era devedor de lições de vida, pois partilhara comigo muitas experiências dos agitados e atribulados anos que vivera na Espanha republicana, depois refugiado em França, e no Brasil da década de quarenta.
Cedi à sua vontade, a nossa amizade continuou até à sua morte em 1972, mas não há 25 de Abril em que eu esqueça de dar graças por lhe ter sido poupada a amargura de testemunhar o que acontece a um país na mão de quadrilheiros.