Creio, mas pode
ser ilusão ou falha de memória, num passado não muito distante só em
circunstâncias excepcionais se via um filme baseado na história de pessoa ainda
viva. Com a biografia acontecia o mesmo, de poucos personagens se terá então
espiolhado a vida antes de se saberem mortos e enterrados.
Actualmente vai-se a passo acelerado. Ou porque se tornou desmesurada a
curiosidade pública, ou o comércio não tem tempo nem paciência, só ganância, há
assim estrelinhas de vinte anos a autobiografar-se, detalhando os altos e
baixos do seu passado. Vende? Não há argumentos contra, só a favor.
Esta minha estranheza nasce provavelmente de medos atávicos, ou ataques de
pessimismo doentio. Aquela parte de mim que quer correr riscos, agir,
participar, é sempre travada pela outra, a guardiã da memória das aflições e
desaires, impressos nos genes que recebi dos antepassados.
Assim me tornei exemplar no querer, mas sempre com receio de realizar, mais
fértil em sonhos do que em iniciativas, a admirar os que são diferentes e, uma
vez por outra, a dizer-me que se fosse mais novo...
Mas sei por demais que é ilusão e me dou desculpas de mau pagador. Em parte
devido à carga genética, depois com o ambiente da criação, a escola e sabe Deus
que mais, a partir de certa altura o carácter está formado, a menos de milagre
ou acontecimento de sérias consequências, não há forma de o mudar.
À custa de alguma introspecção, trambolhões frequentes e paciência, ainda se
pode ter a ideia de que nos conhecemos um bocadinho. De verdade, contudo, as
frestas desse suposto conhecimento são mais estreitas do que os buracos negros
da ignorância que temos de nós próprios.
Assim sendo, não adianta quebrar a cabeça a tentar a impossível mudança do que
somos, mais vale divertirmo-nos a fingir o gostaríamos de ser.