(Textos dedicados aos jovens compatriotas que agora chegam à Holanda)
O meio em que vivi os quase quatro anos seguintes, o do gueto
diplomático, favorecia pouco o tomar conhecimento do país e o seu povo.
Talvez hoje o seja menos, mas nessa época era um círculo fechado,
estratificado, superficial, funcionando num ambiente de comédia. Desde o
amanuense no primeiro degrau da hierarquia, até ao Olimpo onde revoavam os
embaixadores, o tom corrente era desdenhar dos holandeses, considerados toscos,
pesadões, unhas-de-fome, com hábitos odiosos e pouco dados à higiene. Se alguma
utilidade se lhes reconhecia, era a de servirem como exemplos de ridículo ou
personagens de anedota.
Surpresa, tive-a com muitos dos políticos, aristocratas e burgueses
endinheirados que frequentavam as festas e jantares das embaixadas, pois esses
mostravam igual desdém pelos seus compatriotas. Por vezes eram eles próprios os mais assanhados em sublinhar a
grosseria da plebe, a sua ignorância e falta de sensibilidade.
De início julguei que fosse aquilo um sintoma do clássico nojo dos ricos pelos
pobres, mas aos poucos foi-se-me tornando claro que era antes um desprezo de
casta, um sentimento de brâmanes por intocáveis. O que sobremodo me surpreendeu, pois contrariava o que
tinha lido e outros me tinham garantido: que a sociedade holandesa era das mais
avessas a hierarquias, dife- renças e desigualdades.
O contrapeso a essas tiradas faziam-no eles com a costumeira genuflexão à
liberdade, que o povo holandês tanto prezava, ao carácter democrático das
instituições, aos mestres da pintura, ao asseio das ruas e à luminosidade do
céu.
Eu ouvia, observava, acontecia-me anotar uma situação ou uma conversa, as
feições de um rosto, mas se o fazia era para eventualmente o usar numa
história, e não porque doutro modo me interessasse o país ou a gente à minha
volta.
Com o decorrer do tempo tive de me render à evidência de que os holandeses
conseguiam conciliar a fúria da igualdade e uma igual fúria da hierarquia e do
espírito de casta, do credo, do clube, vivendo em harmonia numa situação de paradoxo social que, apreciada
por quem como eu vinha de fora e de longe, causava uma surpresa comparável à de
assistir a uma exitosa tentativa da quadratura do círculo.
A evidência impunha-se, mas mesmo assim surpreendia. Confesso que nesse tempo
me preocupou pelo que lhe via de patológico, aquela compartimentação sem fim a
contradizer o espírito democrático e libertário que me garantiam reinar na sociedade
holandesa há séculos e se tornaria como que rabioso, e ainda mais
contraditório, a partir da mitológica década de 60.
A língua soava agressiva, gutural, com palavras de excessiva longura. Havia
nela também um curioso emprego do acento agudo, do qual, até então, eu só conhecia
a função diacrítica. Quando passava perto do Hirsch Gebouw, na Leidseplein, iam-se-me os olhos para
o alto do terceiro andar, itrigado pela misteriosa grafia do cartaz luminoso
que nele anunciava: Het Parool, léés die krant.Como raio se leria
uma palavra com dois acentos agudos consecutivos?
Penetrar os mistérios de semelhante idioma não estava nos meus planos, nem me
iria esforçar para compreender o que me diziam. Queriam os holandeses que os
entendesse? Falassem-me em inglês, o que eles cortesmente faziam.
Uma reviravolta dos ventos da fortuna obrigou-me a sair abruptamente do casulo
em que tinha vivido, precipitando-me num dia-a-dia bem diferente, podendo dizer
que, de facto, só nesse momento cheguei à Holanda.
in A Ira de Deus sobre a Europa - Quetzal, 2016