domingo, outubro 15

A festa dos salvadores

 

Alguns queixam-se de com a idade a memória vai falhando, as recordações se esfumam, confundem os acontecimentos. É lamentável, mas já Amália Rodrigues cantava que ninguém foge ao seu destino.

Separam-nos quinze anos, conheci o Abel ainda alferes, depois capitão sem barriga e sem barba, mais tarde com barba à Che, mangas arregaçadas, uniforme de camuflagem, botas de paraquedista. Ainda tenente, visitei-o num modesto rés-do-chão em Benfica, e quando a Revolução tinha ano e meio mudara para um apartamento dos altos do Restelo. Felicitei-o pela promoção a general, benesse que há muito aguardava e no seu pensar merecia pelos - palavras suas – "relevantes serviços prestados à Pátria e à Revolução".

Gosta de mostrar fotografias desse "incrível momento". Não se distingue bem, mas diz que é aquele ao lado do Jaime Neves. Ao lado do Chaimite também é ele.

- Aqui com a G7, ao pé do Salgueiro Maia. Sou eu.

Talvez seja, mas a figura é a três quartos num instantâneo desfocado.

- Fomos amigos. Um grande herói. Olha eu aqui, quando fomos esperar o Cunhal à Portela. Um momento em que só se acredita tendo estado lá.

Aproxima a fotografia, receoso de que a miopia dificulte o meu apreço.

Para não o desgostar aceno que sim, mas é uma confusão de barbas, ora à Che, ora à Fidel, uma ou outra à Marx. Pega na esferográfica, aponta uma cabeça na massa de gente:

- Eu.

Ultimamente fala menos no passado. A barriga pesa-lhe, há muito rapou a barba, sofre do fígado, tem problemas com o genro, acha que a Pátria, entregue "a esta súcia" vai água abaixo.

Gosto dele, enternece-me quando acrescenta: - E eu nesta idade não lhe posso deitar a mão!

Enternece-me também porque é o fiel retrato do salvador que vive em tantos, assustados de que não cheguem a festejar o Abril do meio século.