domingo, setembro 3

Altos voos

 

Os abençoados nascem, crescem, vão aprendendo a enfrentar a infinidade de peripécias da existência com boa noção do peso e da medida, conscientes de que em grande parte das situações, o que de facto conta é a sabedoria cautelosa do “nem tanto ao mar, nem tanto à terra.”

No que a mim toca, comecei cedo, demasiado cedo, com o sonho de altos voos, admirando personagens célebres a quem um dia me pudesem comparar, gastando tempo na escolha de que arte melhor conviria ao meu juvenil e irrequieto anseio de fama. Mas a idade não perdoa, e as andanças do dia-a-dia, os inevitáveis enganos, reviravoltas, sustos e trambolhões, cedo se encarregaram de pôr travão ao desvario dos meus anos de adolescência. Todavia, se num momento de descuido esqueço a idade, esqueço também a cautela, corro o risco de perder o tino. Porque esse imaginar altos voos é de facto modo de dizer, febre passageira, são antes esperanças e sonhos tontos, aqueles que por segundos nos tomam antes do adormecer, quando o entendimento abranda, dando a ilusão de que podemos moldar o amanhã, corrigir os desmandos de ontem, escolher um caminho novo, largo e desimpedido.

Numa miragem recorrente vejo-me então bem outro do que sou, espanto-me da facilidade com que resolvo questões, evito atritos, só vejo harmonias, fujo aos perigos e amo o meu semelhante com o fervor que o catecismo aconselha.

Sem caridade nem perdão o despertar recambia-me para o trivial, mas no instante em que encaro o espelho não me reconheço naquele indivíduo, demora a que a imagem da realidade vá apagando a da fantasia. Com penosa franqueza digo então para comigo: cá estamos, companheiro. Porque realmente somos dois: o sonhador de altos voos e o que, preso à cinzenta monotonia do dia-a-dia, se pergunta por que está na cadeia e que maldição lhe cortou as asas.