sexta-feira, julho 21

À hora marcada

 

É terrível a frieza desumana dos regulamentos. Um telefonema a anunciar que esta tarde, à hora marcada, irei ao hospital assistir a uma morte. Seremos quatro, os que ela pediu que estejam presentes quando, como há muito espera, o médico finalmente a liberte do sofrimento e da indignidade.
Que palavras se dizem num momento assim? Para onde se olha? Que gestos fazer? Que sentimentos me assaltarão. Será que, como agora, ainda manhã, irei recordar boas e más ocasiões da nossa amizade? Ter pena? Sentir medo?
Restam-lhe ainda umas horas de vida e dou-me conta de que já falo no passado. Muito lhe faltou, porque não conseguiu o que desejava e o seu intelecto fazia esperar, mas recebeu a dádiva sem preço de um amor verdadeiro. Duas mulheres que a paixão uniu quando ainda era pecado e vergonha, e sem queixa sofreram o ostracismo das suas famílias e daqueles que aguardam até que a sociedade lhes manda que mudem de opinião.
Escrever isto pode parecer exibicionismo, o aproveitamento de uma tragédia, mas posso afirmar que o estado de espírito em que me encontro, e a proximidade da minha própria morte, me põem além do superficial. O terror e a solenidade de um momento assim não se partilha, tão-pouco traz alívio ou é desabafo o assinalá-lo.
Olho o relógio. Nunca as horas passaram tão depressa.