Escondido no fundo
do meu ser montanhês há-de haver uma costela marinheira, herdada de algum
remoto avô navegante que não deixou história, pois tanto quanto sei, nos dois
últimos séculos a minha gente foi de vinhas, de rebanhos, searas e olivais.
Nenhuns terão visto o mar. Os que conheci iam uma vez na vida à festa de Santo
Antão da Barca, em Agosto, e aproveitavam para ver o Sabor, rio que só no
Inverno merece esse nome, mas que os banzava por lhes parecer caudaloso, e dele
garantiam que a corrente tinha mais força do que dez juntas de bois.
Compreende-se-lhes o espanto. Não conheciam força maior, pois em todo o imenso
ermo de montes e vales onde mourejavam havia apenas duas nascentes donde
corriam, correm ainda, uns fios de água tão estreitos, que de menino eu os
atravessava dum salto.
Na sua imensidão o mar sempre me assustou, como os barcos sempre me enfeitiçaram.
Comecei pelos de papel, mas mal pude segurar um canivete fi-los de cortiça, com
mastros, velas e leme. Construí-os depois de madeira, com quilha e convés,
paus-de-carga. Infelizmente, porque me faltava ciência, esses adernavam em
vez de navegar, e cansei-me da minha inépcia. Mas o fascínio pelo mar permaneceu.
Forte. Quase irresistível, a ponto de por três vezes me ter posto a vida em
perigo.
Na primeira, teria cinco anos, na praia do Senhor da Pedra, em Miramar, uma onda milagrosa devolveu-me ao areal. Depois foi por me meter num caiaque, esquecido que não sabia nadar, a corrente do Lima a levar-me para a barra. A última deu-se em Monastir, na Tunísia. Com a água pelos tornozelos, de repente o fundo desapareceu e senti que me afogava. Reflexo ou milagre algo me tirou dali, descobri-me estendido na areia, estranhando que a minha mulher perguntasse se me sentia bem.
Desde então olho-o de longe e nem à praia vou.