Prezado senhor Liebkoff,
Porque eu ignorava a sua fixação maníaca pelos gadgets úteis e inúteis, não
compreendi de imediato que a minha confissão de que não possuo, nem quero
possuir, câmara de vídeo o surpreendesse e irritasse tanto. E foi para não aumentar
a sua irritação que lhe escondi que também não possuo micro-ondas, nem
telemóvel, gravador DAT, alarme infravermelho, TV portátil, agenda electrónica
ou relógio que continue a marcar a hora certa a 30 metros de profundidade.
Tudo isto lhe poderia ter eu dito de viva voz em resposta à sua diatribe, mas
tenho um bom motivo para lho dizer por carta: é que cada vez mais vou dando
preferência à palavra escrita sobre a palavra falada. E talvez porque elas compreendem
a minha idiossincrasia, é que ainda consigo participar numa hora de cavaqueira
com as três ou quatro pessoas que conheço há uma eternidade e cuja companhia prezo.
Mas com as restantes o conversar vai-se-me tornando
uma sobrecarga, de forma que começo a preferir o silêncio e a solidão da
escrita.
De princípio temi ver nisso um preocupante sintoma do ensimesmamento que
resulta da idade. Raciocinando depois com mais calma, dei-me conta de que essa
antipatia tem menos a ver com qualquer diminuição das minhas faculdades mentais,
do que com a insignificância do geral das conversas que oiço, ou em que dum ou
doutro modo tomo parte. Para lhe dizer a verdade, ter de discorrer sobre a
utilidade dos gadgets, ou o desinteresse que por eles se sente, também me não
pareceu o que se chama um exercício do espírito.
Esta minha franca afirmação não significa, contudo, que eu nutra por si uma
animosidade particular. Bem ao contrário, como verá. O desinteresse em
conversar tenho-o também
com outros, e a tal ponto que, para meu mal, me afecta o humor.
Se por exemplo passo por uma
esplanada ou entro num café, acontece-me olhar os presentes com o mesmo malicioso
deleite de um polícia ou de um sacerdote que surpreende
quem peca contra os artigos do código ou os mandamentos da divindade. Porque a
maioria daquela gente está ali em infracção! A conversar para matar o tempo!
Um ou outro terá parado para um refresco. Aqui e ali haverá alguém envolvido numa discussão sensível e inteligente, numa útil troca de ideias, no andamento dum negócio. O resto cacareja com o desconchavo de galinhas agachadas num poleiro.
Cacareja sobre o tempo, sobre o
quizz de ontem, as doenças, o sabor da sande de queijo, a política, a arte,
cata fiapos de inveja, pica grãos de má-língua. E o mesmo se dá um pouco por
toda a parte, nas recepções, nos foyers dos teatros, nas festas de família,
emprestando ao mundo o aspecto duma imensa capoeira.
Não vá, porém, acusar-me de misantropo, que (ainda) o não sou. Deus sabe com
que gosto oiço alguém que, conversando, me ensina ou diverte. Mas isso é a
excepção. Por regra, e infelizmente, no seu estado mais simples a conversa parece
ser a versão humana do ritual de farejos e toques com que os animais, quando se
encontram, verificam as disposições mútuas. Depois, sem terem permutado nada
que valha a pena, vai cada um para o seu lado, fazendo acenos, a nossa forma de
abanar o rabo.
Espectáculo tão deprimente que eu, afinal, lhe venho agradecer que tenha tentado, com entusiasmo e paixão, incutir-me a sua mania.
In Mazagran – Quetzal, 2012