Na rua são um casal como há milhões.
No trato, porém, nota-se que ele se distingue pela inteligência, a
sensibilidade,a vastidão da sua cultura, o espírito sequioso de aprender.A
mulher, por sua vez, em tudo se mostra mediana. Numa fala arrastada exprime
opiniões cautelosas de lojista,conversar com ela não é um pingue-pongue de
argumentos, mas um cansativo atirar de bolas que ao tocá-la perdem a
elasticidade.
A verdade manda confessar que a acho antipática. Feições, atitudes, sorriso,
corpo, tudo nela me aborrece, involuntariamente retine dentro de mim o alarme
de um desagrado irracional, e só esforçando-me consigo afectar o modo neutro
que lubrifica os contactos sociais.
O que em ambos me fascina é o mistério. Ele não somente a ama, como lhe vota
uma adoração extrema. A tal ponto que, quando ela fala, o cérebro como que lhe
entra em curto-circuito,
desligando a agudeza do intelecto e a finura da sua sensibilidade. Vemo-lo
então literalmentebabar-se,os olhos presos nela com uma intensidade de islamita
fanático que escuta o mais sábio dos imãs.
Mas o fanatismo que lhe atribuo talvez não seja tão completo como parece.
Quando a mulher está ausente e a conversa recai sobre ela, desata ele num
rosário de elogios, tantos e tão exagera-
dos que involuntariamente traem o receio de que alguém a critique ou minimize
as suas qualidades. Dá a ideia de que constantemente evita ver-se posto entre a
espada e a parede, ser obrigado a escolher entre a agudez do seu juízo e a
cegueira da sua paixão.