terça-feira, fevereiro 7

Desigualdades

 

Na rua são um casal como há milhões. No trato, porém, nota-se que ele se distingue pela inteligência, a sensibilidade,a vastidão da sua cultura, o espírito sequioso de aprender.A mulher, por sua vez, em tudo se mostra mediana. Numa fala arrastada exprime opiniões cautelosas de lojista,conversar com ela não é um pingue-pongue de argumentos, mas um cansativo atirar de bolas que ao tocá-la perdem a elasticidade.
A verdade manda confessar que a acho antipática. Feições, atitudes, sorriso, corpo, tudo nela me aborrece, involuntariamente retine dentro de mim o alarme de um desagrado irracional, e só esforçando-me consigo afectar o modo neutro que lubrifica os contactos sociais.
O que em ambos me fascina é o mistério. Ele não somente a ama, como lhe vota uma adoração extrema. A tal ponto que, quando ela fala, o cérebro como que lhe entra em curto-circuito,
desligando a agudeza do intelecto e a finura da sua sensibilidade. Vemo-lo então literalmentebabar-se,os olhos presos nela com uma intensidade de islamita fanático que escuta o mais sábio dos imãs.
Mas o fanatismo que lhe atribuo talvez não seja tão completo como parece. Quando a mulher está ausente e a conversa recai sobre ela, desata ele num rosário de elogios, tantos e tão exagera-
dos que involuntariamente traem o receio de que alguém a critique ou minimize as suas qualidades. Dá a ideia de que constantemente evita ver-se posto entre a espada e a parede, ser obrigado a escolher entre a agudez do seu juízo e a cegueira da sua paixão.