domingo, janeiro 22

Outra vida

 

Faz quanto pode para que a recordação se torne menos crua, mas não consegue. Pior: em vez de esfumr-se com os anos, a memória força-o a prestar atenção a minúcias que não lhe tinham escapado, mas escamoteara da lembrança, tentativa cobarde de ignorar o nojo, esquecer a baixeza de se sentir inimigo de si mesmo, vítima dócil, querendo fosse doutro o eu que ali tinha estado.

Para seu mal não fora, nem o restaurante um palco de teatro e ele actor, mas tudo real, acontecido, sala cheia, agitação, fumo, ar de festa, gargalhadas, e o que nem de longe poderia imaginar: ia ser dado ali o tiro de partida para o seu destino.

Alma de subalterno, sempre no receio de fazer esperar chegara adiantado, o empregado a indicar-lhe a mesa num tom de falsa cortesia, o olhar a traduzir que pela atitude e o fato não pertencia ali, mas atencioso na vénia, ao puxar-lhe a cadeira, na pergunta do que iria beber.

O patrão chega, o gerente em rapapés, mesura à desconhecida. Levanta-se e aguarda, recruta em sentido, desajeitado, uma mão na do patrão a outra a puxar a cadeira da rapariga, incapaz de parar o sorriso tolo. Emília? Repete o nome, fingindo não ter ouvido. Toca-lhe o braço, espera que se sente.

Com o burburinho mal se compreendiam, recorda frases soltas, vê-se a reparar no sorriso da desconhecida, indiferente, como se  estar ela ali fosse obrigação ou tempo de serviço. Referindo banalidades, mesquinhices, um interesse de cortesia.

Que poder o obriga ao martírio? Que feitiço o impede de safar a memória? O que o leva a negar-se a compaixão que lhe traria paz e descanso?

Conhece a resposta, como sabe por demais que embora nem sempre assim pense, recordar essa ocasião e as consequências que teve é um mal menor. Mas quando o vê à luz do tempo de uma vida, muitas vezes se pergunta se é a sua ou foi um engano da reincarnação.