Carlos Munim nunca
vira o sogro naquele entusiasmo.
O velho conhecia a
quinta, a ideia de poder deitar mão àquilo nem em sonhos lhe passaria
pela cabeça, mas as palavras do genro embruxavam-no, quanto mais ele
falava, melhor lhe pa-
recia o caso, já
estavam a discutir quotas e rendimentos, ampliações, a pechincha que ia ser.
Em raros instantes
caía em si, perguntava-se que força, agora que chegava ao fim, o impelia a continuar.
Pergunta ociosa. A resposta, ainda miúdo já a sabia entranhada no sangue.
A força que o
empurrava era o ódio, um ódio instintivo, intenso, irracional, a quem tivesse
mais ou gozasse o que ele não tinha. Assim se vira crescer, alerta, rápido no ataque,
especialista
na mentira e na
deslealdade, nos golpes baixos. Espinha curva, quando preciso, faca na
mão mal o outro se distraía ou voltava as costas.
Odiava Jorge, que era
e tinha tudo o que ambicionara. Odiava o sogro, o tosco que com o seu
dinheiro o rebaixara, levando-o a vender-se, a aceitar-lhe a filha e,
incansável, lhe re-
cordava a parte do
contrato ainda a cumprir. No meio de uma conversa, num encontro, na
companhia doutros, lá vinha aquele «Então?», que o olhar e o modo sardónico
enchiam de subentendido.
Uma noite ao fim da
ceia, carregado do vinho, o tom da zanga a aumentar, começara a cuspir
no prato os bagos de arroz que lhe incomodavam a dentadura.
Mãe e filha,
conhecendo o sinal, iam deixá-los, fugir para o corredor, mas já ele estilhaçava
a loiça, aos berros de «Filho duma puta!», «Sacana de merda!»,
caralhadas, ameaças, ten-
tando levantar-se,
recaindo na cadeira, aos socos na mesa, o braço a varrer o que ainda lá
estava de pratos e copos.
Num embaraço de
bêbedo, queria avançar para o genro, mas parou, apoiando-se na mesa, confundido
de se ver com um garfo na mão e incapaz de encontrar a faca que
procurava.
Trôpego, perdido dos
sentidos, a babar-se de raiva, as mulheres lá o foram arrastando, ele a olhar
em volta, desconhecendo o sítio, a perguntar-se quem seria o sujeito.
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In Mentiras & Diamantes – Quetzal, 2013